Visão tripartite e gnosticismo

A divisão tripartite do composto humano pode ser considerada em alguns casos, mas não deve jamais ser enfatizada rigorosamente em todas as circunstâncias sob risco de incorrer em gnosticismo.


O espírito não é uma realidade absolutamente distinta da alma senão que uma realidade que se dá na própria alma. O Nous não é nada mais que a alma intelectiva, e mais especificamente o intelecto agente, que é o que de mais semelhante nós temos com Deus, é a imagem de Deus em nós. Mas imagem de Deus não se identifica em absoluto com a Divindade, senão que é a “marca” do Criador na criatura. A brasa do ferro quente presente no corpo não faz com que o corpo se identifique com o ferro quente, mas sim que tenha uma marca do ferro nele. De modo análogo pensamos da mesma forma com relação à Imago Dei que somos. O santo seria aquele no qual o “ferro toca permanentemente o corpo” no mesmo calor abrasante e intenso. Mas o corpo ainda é o corpo e o Ferro ainda é o Ferro.


O gnosticismo se baseia em grande parte na concepção da Unidade do intelecto, tese refutada por Santo Tomás. Sustenta-se esta ideia a fim de rechaçar a analogia do intelecto criado e do Intelecto Incriado, afirmando que seria uma “analogia por univocidade”, sendo o intelecto criado identificado com seu Protótipo Divino.


A separação rigorosa e premeditada entre psiqué e espírito, sem admitir um dinâmico influxo mútuo, e subordinado aquele a este, leva à falsa noção de que “no núcleo do homem” encontrar-se-ia o “espírito” que seria em si mesmo divino e incriado, mas que se encontraria “adormecido” ou “inconsciente”, cabendo ao homem “libertar-se” desta condição “manifesta e finita” a fim de “recuperar o seu centro divino e obter a realização espiritual, a identidade suprema”. Isto é o gnosticismo no seu sentido puro e simples. Ademais, se a alma intelectiva não é ela mesma espiritual, a imortalidade da alma seria impossível, visto que o mero psiquismo se desintegra e ocorre sua dissolução após a morte. Se separamos a alma intelectual da alma psíquica, estamos a dizer que a alma intelectiva não é a forma ou princípio intrínseco de movimento, da animação do corpo essencialmente por ela mesma.


Com estas noções ocorre as seguintes consequências:

1 – A definição do Pecado Original defendido por muitos dos gnósticos seria não uma falta moral, fruto da desobediência e soberba de querer se fazer “Deus” na tentativa de renunciar sua natureza criatural, atribuindo a elas características essencialmente Principais e Senhoriais como “próprias deles”, o que se denomina como “apotheosis”. Ou seja, pôr-se no lugar de Deus. Para o gnóstico, o pecado original seria uma “queda cósmica” em estados manifestos grosseiros, levados pelo “erro intelectual” por desejarem ser o que “já eram” (deuses), o que pressupunha uma “perda” ou “esquecimento” da realidade mais interior e profunda que jaz no ser-humano, e isto seria o que eles chamam de “queda”.


2 – A ausência da distinção entre ordem natural e sobrenatural, pois o intelecto humano passa a ser “naturalmente sobrenaturalizado” e consequentemente passa-se a negar a distinção fundamental entre natureza e Graça. Onde esta última não é mais concebida como um dom gratuito de Deus que nos comunica a Sua Vida Divina pela Humanidade de Cristo na Unidade do Espírito Santo, e nos abre para possibilidades espirituais que nunca atingiríamos por nós mesmos. A Graça para a ser vista como aquilo que viria apenas “atualizar” o que há de “essencialmente divino” no ente humano, algo que está em mera função do “espírito divino” no homem, enfraquecendo a concepção da necessidade absoluta dos sacramentos (ao menos o do Batismo) para nossa salvação e santificação. Negando o caráter possibilitador dos Sacramentos, sendo apenas “atualizadores”, não haveria mais a distinção e entre Graça Sacramental e atual. A Graça não seria mais vista como o princípio e germe da vida Divina em nós, e comunicada seguramente pelos Sacramentos, que seriam os seus canais infalíveis e ordinários. A partir desta noção gnóstica, os Sacramentos passam a servir apenas para “reativar” o que há de divino no ente humano.


3 – A ideia de Fé se torna distorcida, pois não é mais vista como uma virtude teologal que sob a moção da Graça faz o homem anuir às Verdades Reveladas que superam o discurso racional por serem Mistérios, e que é desenvolvida gradativamente, mas se torna apenas como uma “tomada de consciência profunda” da realidade do “espírito divino presente do homem” e das diversas “vias exteriores” que “atualizam” a ação deste espírito.


4 – Isto está intimamente ligado também com o erro dos gnósticos perenialistas de não aceitarem a Encarnação do Verbo como ela realmente aconteceu. Há uma Unicidade do Verbo Divino em Jesus Cristo, não existindo uma atividade do Verbo de Deus “à margem” da Humanidade de Cristo. Isto é a União Hipostática. Não é nada “excessivo”, nem “arrogante” dizer que fora da Igreja não há Salvação, e que a Religião Católica é a única Religião Verdadeira, justamente porque o Verbo de Deus encarnou e revelou todos os Mistérios Divinos que são explicitados pela prolongação VISÍVEL de Sua Encarnação, Paixão, Redenção e Ressurreição no mundo e na história, que é a Igreja. É justamente a exclusividade e unicidade salvífica de Cristo e de Seu Corpo Místico que é a Igreja que fundamenta a Universalidade do Catolicismo (a Religião katá-holós “conforme à totalidade da Verdade”), de ir aos quatro cantos do mundo espalhar a Boa Nova que redime e dá a verdadeira felicidade e única realização espiritual possível e verdadeira aos homens. Não é algo “bairrista” e excludente. É justamente é exclusividade que possibilita e dá razão de ser para a inclusão e busca de toda e cada alma.
Muitos gnósticos afirmam que a frase “Eu Sou o Caminho, a Verdade, e a Vida”, dita por Cristo como algo “absolutamente verdadeiro com relação ao Verbo Divino”, e “relativamente verdadeiro, com relação a Jesus”. Pois ninguém vai a Deus senão por Seu Verbo, mas Jesus seria uma apenas uma “manifestação” do Verbo de Deus, e não o próprio Verbo de Deus feito Carne, feito Pão.
Conclui-se neste ponto que eles necessariamente deformam a União Hipostática, tratando Jesus Cristo como uma manifestação cósmico-temporal do Verbo Divino em uma forma humana, mas ao modo parcial e finito. Eles ao proferir isto, negam a União essencial e Indissociável da Natureza Divina e Humana de Jesus Cristo em Sua Pessoa Divina.
Outros negam a própria Divindade do Verbo, tratando o Logos como uma “manifestação pura” que estaria “fora” da esfera da Divindade (no fundo, estão chamando Deus de ignorante, como se a Sabedoria que Ele têm d’Ele mesmo fosse “inferior” ao Seu Ser, estando portanto “abaixo” d’Ele). Um arianismo camuflado.


5 – A oração se torna desvirtuada de seu real conteúdo, pois não mais seria uma “elevação da alma a Deus, para unir-se a Ele através de atos de Adoração, Petição, Ação de Graças, Reparação e Amor nos seus diversos graus e estágios e assim participar da Natureza Divina pela comunhão com Cristo”.Mas sim um meio do homem “retomar a amplitude de sua divindade que estaria inconsciente e não manifesta para ele mesmo”. Seria o ato pelo qual o intelecto “despertaria sua natureza divina”.
Ou o que é mais sutil; tratam a oração como união com Deus à maneira de um “modo inferior-provisório” e “exotérico” pois tal relação de união ainda estaria “presa no âmbito relativo da dualidade entre Criador criatura, que ainda não reconheceria a divindade em si mesmo” e que logo depois seria “superada” pela busca da reabsorção da individualidade no absoluto, o que eles denominam como “identidade suprema”.


Mais uma vez não concebem que a Encarnação plena do Verbo em Jesus Cristo cancela de uma vez para sempre todo e qualquer dualismo, e todo e qualquer barreira objetiva entre exoterismo e esoterismo.
São estas ideias falsas e deformadas acerca de Deus, da Sua criação, do homem, do mundo e da Revelação que faz estas pessoas terem uma visão errônea de religião e do Catolicismo, como se este fosse apenas uma “via formal” dentre várias outras de realização espiritual. Não se tem mais a distinção das ditas “religiões tradicionais” levando em conta a sua natureza e espécie, somente “graus e gênero”.


Isso é um embuste.


Enfim, uma antropologia errônea leva a uma fé falsa, que leva a uma vida errônea, que leva ao Inferno. Não caiam nessa palhaçada perenialista.
Além destas explicações metafísicas e teológicas para os não cristãos e para os cristãos versados em filosofia e teologia, já existem condenações formais da Igreja sobre estes erros há muito tempo.


A) em defesa da imortalidade da alma, por ser a alma intelectiva espiritual:”Condenamos e reprovamos todos os que afirmam que a alma intelectiva é mortal” – Denzinger 1440


B) em Defesa da Alma intelectiva (e não meramente psíquica) como forma do corpo humano:”Además, con aprobación del predicho sagrado Concilio, reprobamos como errónea y enemiga de la verdad de la fe católica toda doctrina o proposición que temerariamente afirme o ponga en duda que la sustancia del alma racional o intelectiva no es verdaderamente y por sí forma del cuerpo humano; definiendo, para que a todos sea conocida la verdad de la fe sincera y se cierre la entrada a todos los errores, no sea que se infiltren, que quienquiera en adelante pretendiere afirmar, defender o mantener pertinazmente que el alma racional o intelectiva no es por sí misma y esencialmente forma del cuerpo humano, ha de ser considerado como hereje.”- Denzinger 902.

É isto.

Por André Abdelnor Sampaio

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