Alguns apontamentos sobre o demônio piedoso: Gnose, transtorno delirante, e pseudomística

Por André Abdelnor Sampaio

Sabemos que mestres e falsos místicos sempre existiram e existirão até o fim dos tempos. Isso é certo. Mas também sabemos pelas Escrituras Sagradas que haverá um tempo em que os homens não suportarão mais a sã doutrina e escolherão para si mestres que satisfazem seus caprichos, como nos alerta São Paulo Apóstolo (2Tm 4:3-5).

Em tempos de generalizada crise doutrinal tais influências pululam e conseguem não raro adentrar mesmo nos meios considerados mais sérios. Diante da crise modernista (em todos os seus mais variados setores e tipos), não se trata apenas de um ponto ou outro contra a Fé (o que já seria suficiente para se rechaçar categoricamente), mas também de todo um sistema de pensamento que, embora explicitamente não queira demolir a Fé, subrepticiamente vai pulverizando a doutrina católica “de dentro”, como uma injeção intravenosa letal, que distorce gradualmente o teor e sentido dos artigos de Fé, mesmo que os alegue manter e inclusive defender a doutrina da Igreja. Este é o golpe de satanás bem dado, onde, por meio do emprego desvirtuado de termos católicos acompanhado de outros termos ambivalentes, insere-se na própria letra um espírito anticatólico, gnóstico e/ou humanista, liberal. Inclusive pode haver frequentemente uma intersecção entre os dois erros.

Tudo se torna ainda mais babélico e danoso quando surgem certos tipos que, amparados nestes ensinamentos perniciosos de falsos mestres, fabricam uma falsa mística decorrente deste sistema. E pior: uma falsa mística que se pretende conforme a Tradição da Igreja. É pior porque neste caso já não se trata mais de alguém confundido por estes erros por conta de uma inteligência limitada ou leviana que não considera as coisas em sua profundidade necessária, em sua extensão devida. Trata-se aqui de ovelhas com dente de lobo que falsificam todos os pontos da verdadeira mística por conta de uma inteligência errônea. Isso causa mais danos no caráter, pelo orgulho intelectual, e em certos casos pode ser potencializado em seus efeitos lesivos (ainda que atenuado em sua culpa) por transtornos psicóticos prévios, concomitantes ou posteriores à adesão destes falsos sistemas.

Vejamos algumas características do falso misticóide de inteligência errônea:

1- Manipulação constante e sutil do sentido dos ensinamentos católicos segundo o achismo e conveniência do misticóide. Um narcisismo ora explícito ora velado em que se deforma habitualmente a quase integridade da doutrina católica para satisfazer aos seus anseios momentâneos.

2- Apego desordenado ao juízo próprio, que leva ao revanchismo descarado ou camuflado do narcisista misticóide mesmo diante de justas objeções.

3- Sobretudo em épocas de redes sociais, o misticóide (pseudomístico) falsifica compulsivamente sua história, fábrica narrativas românticas e mirabolantes sobre tudo o que lhe aconteça, glamouriza suas tragédias e seus atos dissonantes do próprio bom senso em uma versão customizada da “Poliana e seu jogo do contente”.

4- Falsa noção sobre a iluminação da Graça, que deprecia ou deturpa o sentido e significado dos assuntos definidos sobre a Fé e os costumes, contribuindo para a falta de compreensão da verdadeira mística, o que move a reação extrema igualmente errônea do menosprezo pela mística católica em sua justa e adequada acepção, senão teórico, ao menos na prática. Contrariando o princípio básico da doutrina católica, o discernimento de espíritos mais elementar que cabe a todo cristão possui: Se o que parece iluminação de Graça resulta ir contra a Fé ou os bons costumes, certamente não está assistido por Deus.

5- Deturpação sistemática do conteúdo do VIII Mandamento: Atestar um erro dito ou cometido pelo falso misticoide de modo público e notório, erros habituais e posteriores às suas “visões” é sempre ou quase sempre imputado pelo próprio misticóide como “difamação, maledicência, falso testemunho”.

Tomemos antes o exemplo recente de um pseudocatólico, que embora não se erigisse explicitamente místico, tinha notórias tendências sectárias, de guruzismo: Olavo de Carvalho e seu séquito de fanáticos. É perfeitamente possível observar (e já demonstramos em outros trabalhos)  uma pseudoteologia moral própria no olavismo, que na verdade apresenta traços comuns com todo líder sectário que se pretende “cristão”. Esta pseudomoral (falsa moral) gira em torno da deformação compulsiva e ampliação semântica do conteúdo do Oitavo Mandamento. Isso é um expediente próprio de deformadores de consciência para destruir o calibre do juízo das pessoas.

Para Olavo (e um olavette padrão), basicamente único pecado socialmente relevante e gravíssimo que merece a mais viva repugnância e penalidade imediata é a tal da “difamação”, que neste caso se traduz em… contrariar ou refutar o próprio Olavo, e não em seu teor próprio, que é tirar a boa fama de alguém sem que isso gere em primeiro lugar um bem proporcional à fama tirada.

Ele baseia sua filosofia quase sempre nestes conceitos de “sinceridade, amor à verdade, autoconsciência”. Quem o objeta ou aponta as lacunas, inconsistências e erros de princípio em seu pensamento é julgado costumeiramente como possuidor de “malícia”,  difamador, “juízo malicioso”, etc. Quase sempre a sua resposta diante dos católicos que o refutaram sempre gira em torno do VIII Mandamento, nunca no conteúdo em si da objeção que lhe fora feita.

O efeito disso a curto ou a longo prazo é simplesmente danificar o calibre do juízo moral das pessoas, violar os ditames mais básicos do bom senso, e sufocar toda e qualquer objeção a Olavo sob pretexto de ser considerado malicioso, de incorrer em juízo temerário, em maledicência, em “difamação”, em “falta de senso das proporções”.

Uma das principais táticas do abuso de consciência e controle mental é essa. Distorcer o juízo moral na “raíz”, e um dos modos mais daninhos de realizar isso, sobretudo em um meio que se pretende cristão é através da deformação dos conceitos e ampliação semântica da espécie dos pecados contra o VIII Mandamento. Assim sufoca-se toda e qualquer resistência e justa reserva a tudo o que o guru afirme, mesmo que viole clara e inequivocamente a doutrina católica.

Porém, quando levamos isso para outro âmbito, o da espiritualidade propriamente considerada, que por conta da crise doutrinal que atravessamos nestas últimas décadas (não é possível haver espiritualidade sã que não seja solidamente enraizada no dogma católico e apoiado na moral católica) são escancaradas as portas para todo tipo de desvario e nos deparamos com casos patentes de transtorno de personalidade delirante como ímã para a difusão de falsas místicas.

O funcionamento psíquico do delirante se encontra muitas vezes drasticamente fragmentado pela psicose, mas quem padece frequentemente não se dá conta ou não quer reconhecer. Qualquer trabalho de ajuda ou auxílio se torna redundante e ineficiente porque não se deixa ajudar. Mas nem sempre tais pessoas são absolutamente inimputáveis, podendo inclusive possuir certas habilidades retóricas, alguma simulação ou aparência de sanidade estando o ambiente controlado, e até mesmo eloquência em suas manifestações orais ou por escrito, e por isso pode ser instrumento do demônio piedoso e enganar por certo tempo várias pessoas, mesmo acompanhado de transtornos mentais (uma coisa não necessariamente exclui a outra, embora não se deva mesclar os âmbitos).

É precisamente neste âmbito que notamos outra característica do demônio piedoso na modalidade do pseudomisticóide: a contraposição entre vida espiritual e deveres de estado, algo jamais admitido pela doutrina cristã, cuja a perfeição da vida espiritual passa necessariamente pelo cumprimento exemplar e dedicado dos deveres de estado (obrigações familiares, profissionais, sociais de acordo com o estado de vida em que se encontre).

O demônio piedoso frequentemente inspira nas pessoas expostas à sua influência uma busca por uma certa “fisionomia espiritual” que em nada corresponde ao seu estado de vida, não raro com característica de sensualidade, uma luxúria sofisticada e disfarçada de “amor esponsal” por Deus, numa paródia satânica do Cântico dos Cânticos, e dos Santos carmelitas.

Para o demônio piedoso, ou há um desprezo formal destes deveres sob pretexto de serem “ditames externos de uma moral burguesa”, ou há uma negligência grave e deslocamento de ênfase acerca destes deveres, como se fossem coisas acidentais ou extrínsecas, cujo cumprimento deva  ser automatizado ou delegado para que sobre tempo para se dedicar “às coisas do Alto”, à “mística, alta cultura, e piedade”. Pois sua “vocação é mui espiritual e elevada”.

Um exemplo concreto bem atual: o demônio piedoso pode inspirar muitas vezes uma mãe de família a negligenciar ou desperdiçar o tempo que poderia ser empregado ao cuidado dos filhos para passar o dia inteiro em redes sociais falando bobagens sobre vida espiritual, acompanhado sempre de uma auto-promoção de suas “excelsas virtudes”, e erigindo-se guia de consciência dos demais.

Inspira também a passar horas rezando ou multiplicando práticas de piedade sem uma ordem devida, em detrimento dos deveres de mãe e esposa (ou de pai e de esposo), eximindo-se de todas ou grande parte das tarefas que competem ao seu ofício.

Tão distante se encontra esta mentalidade da verdadeira concepção católica que sabe que a perfeição da vida da Graça, a vida mística ordinária, dá-se A PARTIR dos deveres de estado, e não à margem ou paralelo, muito menos em rejeição positiva destes.

Não raro, o demônio piedoso acompanhado de um extremo narcisismo não aceita correções mesmo de quem tem este dever por ofício, ou por fraternidade cristã. Habitualmente usa de uma crença delirante como justificativa para seu desvario, e quem o objeta mesmo com a justeza exemplar de argumentos sempre será visto como “perseguidor”, como “impiedoso e fariseu”, como “falto de misericórdia”, como adepto da “moral burguesa”. Tudo para esconder a própria inconsistência e para justificar as próprias ilusões, não importa o quão grave seja o dano causado a si e sobretudo aos mais próximos. Para isso faz malabarismos mentais inacreditáveis para forçar a todo custo que estão conspirando contra sua excelsa pureza de alma e grande altitude espiritual, num expediente vitimista, em que faz-se um perpétuo “perseguido”, e “injustiçado”.

Esta ideia obsessiva faz parte da dinâmica do delírio. O demônio piedoso pode recitar trechos e mais trechos de livros de Santos, até mesmo de clássicos de espiritualidade, pode copiar e colar tais trechos para posar de piedosos em foro público, ou em redes sociais (sem deixar claro o que de fato se absorveu do conteúdo), mas tudo isso é feito com uma série de informações sem ordem alguma, sem organização mínima, sem contexto adequado.

Não raro, quem está movido pelo espírito do demônio piedoso pode repetir slogans vazios que podem ser usados tortuosamente segundo o interesse do momento. O “senso das proporções”, por exemplo, é uma “palavra mágica” que o demônio piedoso pode muito bem se valer como tentativa de neutralizar qualquer objeção, qualquer restrição que se apresente às suas concepções e seus modos públicos. É um tipo de inteligência errônea, em que apenas quem se adequa ao “senso de proporções” segundo o capricho do delirante, somente aquele que conhece sua história “do início ao presente momento” segundo a narrativa mascarada e maquiada do próprio demônio piedoso pode entendê-lo e julgar mesmo aquilo que é patente.

Se o misticóide for razoavelmente articulado, pode possuir discípulos, que geralmente são pessoas tão impressionadas e psicologicamente fragilizadas ou desbalanceadas quanto ele. Mas menos articulados verbalmente, e mais fragilizados diante das armadilhas e violência psicológica do misticóide.

Ele realiza todo tipo de abuso de consciência quando não sabe responder às perguntas pertinentes que seus seguidores (alunos) ou mesmo ouvintes e espectadores lhe apresentem. Ele não quer ter “sombras”, pois quer ser “rei de pões”, mas nunca rei de condes e duques. Se ele vê alguém com luzes próprias, ao invés de elevar o potencial e formar de quem lhe confiou a instrução (como é próprio de um verdadeiro mestre), busca frequentemente humilhá-lo para evitar concorrência e não ofuscar seu “brilho”.

Se aqueles que tomaram conhecimento de seu conteúdo, mesmo após ponderado e detido exame contestam (mesmo com o devido e ordenado respeito) sua doutrina e sua postura (ou impostura) pública, isto é, em questões pertinentes para o Bem-comum, o pseudomístico inspirado pelo demônio piedoso não perde a chance de retaliar com insultos pessoais, buscando expor algum defeito real ou imaginário de quem lhe contrapõe em uma questão pública, de cunho objetivo.

Por fim, sem a pretensão de esgotar todas as notas do pseudomístico, há uma última característica notável senão na totalidade, na maioria: o vício da singularidade, que se manifesta, entre outras coisas, pelo anseio dominante de ser regido apenas por uma “moção divino-positiva” em detrimento ou à margem da lei natural e evangélica comum a todos. Uma especie de “antinomismo”, isto é, a tendência gnóstica de violar a lei comum sob pretexto de cumprir uma “lei superior” acessível a um grupo seletíssimo que se pretende “privilegiado” ou a um indivíduo que se pretende tal. Manifesta-se também outras vezes num naturalismo, que ignora as feridas do pecado original. 

Disso se derivam algumas manifestações práticas, que mencionamos as que entendemos por principais e recorrentes, sem a pretensão de esgotá-las:

  1. Imitar ou buscar nos Santos aquilo que eles não têm de propriamente imitável em seus atos e disposições, mas aquilo que possuem apenas de admirável: fenômenos místicos extraordinários, inspirações divinas em cujo contexto conferem razão proporcional para realizar um ato que em todos os outros contextos não conferirá esta razão (como é o caso de Santa Joana de Chantal que gravou com ferro em brasa o Santíssimo Nome de Nosso Senhor)
  2. Buscar exemplos particularíssimos de virtude dos Santos em que, mesmo sem inspiração divina claramente atestada, realizaram atos que não podem ser comumente imitados fora daquelas circunstâncias específicas em que se encontravam os Santos sem que se peque, como é o caso de Santa Pelagia que se jogou do alto da casa onde vivia para preservar sua castidade que estava ameaçada pelos soldados do  imperador anticristão de sua época, que estavam para levá-la em voz de prisão.  Ora, Santa Pelágia em momento algum defendeu o suicídio, ou praticou formalmente um ato suicida. Mas seu ato foi uma resolução muito peculiar onde em suas circunstâncias não se viu outro meio acessível de preservar sua pureza (não apenas de corpo, mas de alma, importante frisar) senão preferindo morrer que pecar. Mas a santa não visou diretamente o suicídio (não pode ser considerada suicida), não deixou a própria vida por desgosto, por falta de sentido, ou por razões de singularidade falsamente religiosas,  e nem seu ato se torna ordinariamente imitável em circunstâncias comuns.
  3. Naturalismo camuflado: manifestações claramente obscenas e impudicas com uma capa de “misticismo”, especialmente em temas do Sexto Mandamento, precisamente sobre o ato conjugal. Declarações indecentes sob a justificativa de que o ato sexual é bom e querido por Deus, e que se está a tratar dele na sua condição antes da queda (como se a queda não tivesse acontecido para todos), e quem apresente recensões contra tais posturas será sempre considerado “fariseu hipócrita”, impuro, ou puritano hipócrita. Ainda que fosse esse o caso, deve-se cumprir o que Nosso Senhor mesmo disse sobre os fariseus: “Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem.”(Mt 23:3). Quando se trata de doutrina, de princípios, assim se deve proceder.

Finalizamos com o ensinamento de dois grandes Santos, que nos exortam contra todo falso misticismo, contra o vício da singularidade, sobretudo na vida espiritual, que leva a buscar práticas bizarras ou que move em uma ânsia por fenômenos extraordinários: 

São Vicente Ferrer ensina, no seu tratado de vida espiritual:

“Aqueles que querem viver na Vontade de Deus não devem desejar obter (…) revelações ou sentimentos sobrenaturais que superem o estado ordinário daqueles que têm, por Deus, um temor e um amor muito sinceros. Pois, um semelhante desejo só pode vir de um fundo de orgulho e de presunção, duma curiosidade vã em relação a Deus ou de uma Fé muito frágil. A Graça de Deus abandona a alma tomada por esse desejo e deixa-a cair nessas ilusões e nessas tentações do diabo, que a seduz em visões e em revelações enganosas. É desse modo que o demônio semeia a maior parte das tentações espirituais de nosso tempo e que as enraíza nos corações daqueles que são os precursores do Anticristo (…)” São Vicente Ferrer, Tratado da vida espiritual, 2a parte, cap.VIII.

São João da Cruz, Doutor da vida mística, ensina exatamente o mesmo princípio, no que se refere ao desejo  de revelações privadas, vidências e a busca por demais dons extraordinários: “Assim o demônio fica muito contente de que uma alma deseje revelações ou que a veja inclinada a isso. Porque tem bem então uma ocasião fácil de lhe sugerir seus erros e de a desviar da Fé tanto quanto puder. Pois (como eu disse) a alma que deseja essas revelações se coloca em uma disposição muito contrária à Fé e atrai para si muitas tentações e muitos perigos” – São João da Cruz, A subida do Carmelo, livro II, cap.11.

24 de Novembro de 2023, Festa de São João da Cruz, o Doutor Místico. 

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