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O laicato católico e a política cristã

Por João Medeiros

A vida do católico médio é difícil em um mundo gravemente perturbado por revoluções, distúrbios políticos e ruptura da ordem social de todos os tipos, formas e sortes. É certo que nunca foi fácil tendo em vista a natureza humana maculada pelo pecado de Adão que constitui sua herança, mas mesmo diante de todas as dificuldades, o homem, quando ordenado e retificado pela ação da graça de Deus, constituiu sociedades cujo fim era facilitar a vivência quotidiana da lei eterna. É ao conjunto destas sociedades, tão diversificadas em culturas, hábitos e idiomas, mas unidas numa mesma Fé e ordenadas a Deus, que nos referimos costumeiramente como “Cristandade” e “Cristandade Menor”.

Em sua “Ética a Nicômaco”, Aristóteles afirmou categoricamente que “o homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade”. O misantropo é um estranho, uma anomalia, e será incapaz da felicidade por contrariar sua própria natureza social que necessita de uma vida comunitária. E mesmo ermitões, como os Padres do Deserto, e os muito estritos monges cartuxos e camaldulenses vivem, ao seu modo, uma vida comunitária. Não outro, mas Santo Tomás de Aquino, o mais sábio dos Doutores da Igreja, afirmou sem meias palavras que a graça não tolhe a natureza, mas a torna perfeita; e os modos de vida eremítica ou monástica provam isso diariamente ao moldar a natureza social do homem àqueles estados de vida ordinariamente árduos.

Em um mundo pós-moderno e pós-cristão cuja própria essência de ser e razão de existir é desfigurar, mutilar e destruir a própria natureza humana, cabe aos católicos, talvez hoje mais do que nunca, o chamado evangélico a ser “sal da terra e luz do mundo”, vivendo na graça de Deus e vivendo a graça de Deus. Muito se fala acerca do Reinado Social de Cristo nos círculos católicos presentes, mas quase sempre – já concedendo o benefício da dúvida – de forma complexa, abstrata, alheia à realidade, numa mera agitação de bizantinismo; mas pouco se fala de uma prática dos ensinos deste nosso Rei Sacrossanto.

A política é uma ciência prática que visa o bem comum da sociedade e seus membros. Se por um lado, leigos ideologizados se metem à política comum com esperanças que, perdoem-me pela franqueza, não passam de ingenuidade ou otimismo barato, como se a solução fosse meramente política e os males do mundo fossem ser resolvidos pelo presidente da república; por outro lado, há aqueles que negam na prática uma atuação laical na política devido ao estado caótico da desordem presente. Ora, o objetivo da política, dizia Aristóteles e anuía Santo Tomás, é a felicidade humana, não deste ou daquele indivíduo ensimesmado, mas do coletivo da comunidade humana, da polis; e acrescenta o nosso santo doutor que para fazer o homem pender a Deus, verdadeiro bem e verdadeira felicidade do homem. E é o que replicava Leão XIII em suas grandes encíclicas contra o liberalismo, numa das quais proferiu celebremente que “a liberdade consiste em que, com o auxílio das leis civis, possamos mais facilmente viver segundo as prescrições da lei eterna” (cf. “Libertas Praestantissimum”, 1888). Se o católico não se predispõe a participar da política para buscar fazer os homens penderem a Deus, quem o fará?

Mas engana-se quem pensa que a política cristã se reduz a um papel legislativo, como muitos estão habituados a pensar, conscientemente ou não ideologizados por uma visão de poder tripartida conforme a ilusão da democracia liberal. Estes mesmos, tão comuns à direita do espectro político moderno, apegam-se exclusivamente a temas morais, dos quais giram em torno, e rechaçam tudo aquilo que veem como ameaça aos seus conceitos, que são muitas vezes dignos da burguesia liberal, idealista e romântica da Belle Époque. A título de exemplo: reforma agrária? “Não! Isto é coisa de comunistas! O direito à propriedade privada é intocável”, diria o nosso interlocutor da direita católica, esquecendo-se de que, segundo a doutrina católica constante dos Padres, como São Basílio Magno e São Gregório Magno, dos Doutores, como o mesmo São Tomás, e do Magistério da Igreja, a propriedade privada, que não é absoluta, deve servir ao bem comum. É isto o que expressa a Tradição Católica, para desgosto de seguidores católicos (sic) do liberalismo econômico austríaco. E com esta centralização em torno de pautas morais e defesa apaixonada de ideologias materialistas por tais católicos liberais-conservadores e mesmo tradicionalistas, temas ditos sociais são dados de mãos beijadas aos progressistas que se querem católicos e aos anticatólicos de esquerda.

Devemos defender inabalavelmente os princípios morais, que são definitivos, inalteráveis e inerentes à Fé Católica e a todo aquele que diz ser católico, e não haja dúvidas quanto a isso; o que não devemos fazer é girar exclusivamente em torno de problemas morais como se fossem os únicos problemas da sociedade, por mais graves que sejam. O macro é importante, sem dúvidas, mas o micro também o é. Compete ao leigo e à política cristã o cuidado pelo bem comum e, sempre que necessário ou mesmo conveniente, a defesa da moral natural e divina, seja no divórcio, aborto, eutanásia, racismo e eugenias gerais, ou quanto as tais “teorias de gênero”, que visam a destruição da própria natureza humana.

O quotidiano do homem não é feito de discussões infinitas e infrutíferas, mas de coisas “banais” e concretas, menores, como pôr comida na mesa, ter remédios para o filho doente ou ser alfabetizado. Como popularizado pelo almirante americano William McRaven, “se você quer mudar o mundo, comece fazendo sua cama”; analogamente, se o leigo católico deseja realizar mudanças no cenário moderno, que comece pelas bases societárias, pelo bem comum. É fácil ao católico liberal-conservador ou tradicionalista (pero no mucho) desejar e sonhar acordado com uma utopia megalomaníaca, salvando o Brasil, o Ocidente, colonizando Marte em voos de caravelas espaciais – utopia que é anticristã como toda utopia, pois não há perfeição nesta vida. Difícil é desejar a nada atrativa vereança para fiscalizar o posto de saúde ou a escolinha do bairro por uma estrutura digna, trabalho bem feito e material em dia; cobrar a pavimentação de ruas esburacadas ou de barro e fornecer o saneamento básico à população mais carente. É mais bonito falar sobre o tema moral polêmico do momento para ouvidos moucos em sessões do congresso nacional e fazer média em redes sociais “contra a esquerda” – como se a Fé Católica fosse de direita ou esquerda para haver “venda casada” com qualquer uma destas correntes revolucionárias e anticatólicas.

Santo Agostinho dizia que “a medida do amor é amar sem medidas” e a política cristã é, antes de tudo, um ato de amor. É um ato, e não uma elucubração especulativa, tal como a própria vida cristã. E o ato de amor primeiro, a adesão necessária e efetiva ao Reinado Social de Cristo – além da fidelidade incondicional à Religião Católica, única verdadeira –, é a vida na graça de Deus pelos sacramentos, com a caridade ou amor, virtude teologal, a ser o viver a graça de Deus, o amor a Deus.

A política cristã é um ato de caridade e de exercício, enquanto poder constituído, das obras de misericórdia corporais, e isto nunca deve ser esquecido. Pelo contrário, é isto que compete ao laicato católico: ser sal da terra e luz do mundo, vivendo na graça de Deus e vivendo a graça de Deus, exercitando trabalhos de misericórdia em âmbito comunitário, na realidade próxima. A política cristã tem princípios religiosos bem definidos por inteiro e, a partir deles, deve possuir critérios objetivos e ações concretas para a realidade próxima em ordem ao amor de Deus e ao bem comum dos homens. E se Deus abençoar, um dia se chegará ao macro, às grandes questões.

A ação católica e a política cristã não se fazem com pelagianismo ou com megalomania, mas com a graça de Deus nos sacramentos, que aperfeiçoa a natureza humana, e pela graça de Deus numa vida de caridade, para que assim, pela prática da fé com obras que a vivifica, evangelizando não só com palavras mas também com atos que lhes provam e dão força, se conduza a sociedade ao bem comum e à verdadeira e própria felicidade do homem, que é Deus, sumo bem e fim último de todos os homens.

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