Primórdios do gênio: “Os Trapaceiros” de Caravaggio

Por Matheus Oliveira

No começo dos anos de 1590, Michelangelo Merisi, pintor natural da cidade de Caravaggio (de onde legou seu nome artístico), vivia em Roma na Itália. Depois de enfrentar a miséria e a fome, sem conseguir fazer de seu ofício uma fonte sustentável de renda, surgiu para Caravaggio uma oportunidade única: o Cardeal Francisco Del Monte ofereceu-lhe casa, comida e dinheiro; quis tornar-se patrono do jovem e talentoso pintor, o que de fato ocorreria. Por quê? Del Monte era uma figura ilustre da época, conhecido por ser um amante da arte e das ciências (chegou inclusive a se encontrar pessoalmente com Galileu). Homem de notável prestígio social, ele morava no Pallazo Madomma para onde Caravaggio foi convidado. Tudo indica que, em certo momento de 1596, Del Monte visitou uma loja na qual um negociador de quadros exibia duas obras de Caravaggio: “A Adivinha” (Buona Ventura) e “Os Trapaceiros” (I bari). A primeira já estava vendida, fazendo com que Del Monte se voltasse para a segunda. Atentemo-nos a esta.

800px Caravaggio I bari
A pintura (de dimensão 94 cm x 131 cm) é atualmente mantida no Museu de Arte Kimbell, em Fort Worth, no Texas.

Dois garotos jogam cartas. Mas um deles é um vigarista que, enquanto esconde uma carta de copas e outra de paus no bolso traseiro, tem um cúmplice, homem mais velho, que se posiciona à espreita do jovem desatento e bem vestido para sabotá-lo, violando a confidência do andamento do jogo, num ato de notória desonestidade. No rosto dos comparsas revela-se a angústia de quem precisa cumprir, sem hesitar, o golpe planejado; no rosto da vítima brilha a ingenuidade e a distração de um cordeiro na iminência de ser devorado, na iminência da trapaça. 

“Os Trapaceiros” não é obra da maturidade de Caravaggio, mas já lança pelo menos três elementos que caracterizam o Barroco na pintura italiana.

Talvez o que nos chame atenção à primeira vista seja o componente da intimidade com o episódio do quadro fazendo do expectador um observador próximo, como se o quadro fosse uma prolongamento da nossa vida cotidiana. Não há a profundidade de um campo aberto, uma vastidão por trás das personagens, o ambiente é restrito. As bordas da mesa não estão à vista o que indica que nós também pertencemos à cena, nós estamos bem perto daqueles rapazes.

Íntimo à realidade das tabernas, da jogatina e da violência – vide a faca no bolso do trapaceiro – era o próprio Caravaggio, que viveu no Campo Marzio, na época uma região pobre e marginalizada de Roma. Ao retratar este mundo baixo e vulgar, Caravaggio quis nos inserir nele como quem fala: “bem-vindos ao meu mundo”. De fato, o mundo de seus quadros parece invadir o nosso – e vice-versa – de modo a tornarem-se um só. Caravaggio exige de nós envolvimento, comprometimento, participação. Que atitude, então, tomar? Revelar ao pobre garoto o golpe que ele está sofrendo? Não fazer nada, apenas contemplar a fraude como um episódio de entretenimento? Ou, quem sabe, auxiliar os trapaceiros para daí obter alguma vantagem? Sendo um miserável italiano, frequentador de tabernas, todas as opções parecem válidas.

Outro componente essencial da pintura barroca é que notamos em “Os Trapaeiros” é a dramaticidade. No estilo barroco prevalece o movimento, o dinamismo, a emoção, a performance. Não há a estabilidade de uma paisagem imóvel, mas sim a instabilidade de uma ação em movimento – neste caso, um crime. Aquele acontecimento está… acontecendo, aquelas vidas estão vivendo, aqueles agentes estão agindo – o jovem vai sendo envolvido, engolido pela artimanha dos trapaceiros, como no princípio de uma espiral. Praticamente todas as telas de Caravaggio se “movem” no momento exato que seu olhar captou, um olhar agudo de gênio que imortaliza o movimento. Caravaggio é dramático, o Barroco é dramático.

Esta dramaticidade nos conduz ao realismo. Um realismo rude, sem idealismo, fiel ao corpo nas suas belezas e feiuras, fiel à alma nas suas virtudes e nos seus pecados. Caravaggio não pinta deuses, mas homens tangíveis, homens que sangram – às vezes até Santos que sangram. O homem ordinário de carne e osso. O homem que trapaça, o homem que é trapaceado. Caravaggio enfatiza a vivacidade e a energia dos sentidos do corpo colocando no centro de seu quadro os dedos maltrapilhos do trapaceiro adulto. Nota-se que todas as mãos estão expostas, e é por meio delas que a essência da cena se realiza: o jogo de cartas e a trapaça através dos sinais nos dedos. Os olhos também merecem atenção: estão calmos, quase adormecidos, no jovem trapaceado; tensos, nervosos, compenetrados nos trapaceiros. No trapaceiro adulto, o movimento dos olhos repercute na testa cujo franzimento é retratado em detalhes. Ninguém está parado, olhando fixamente para o pintor, conservando a mesma fisionomia, a mesma formalidade; pelo contrário, há vida, movimento e a nudez profana do cotidiano – a violência do crime.

Quando o Cardeal Del Monte visitou a loja onde estava “Os Trapaceiros”, é possível que ele tenha percebido mais ou menos essas qualidades. É provável, na verdade, que ele, um amante da arte à frente de seu tempo, tenha vislumbrado naquela obra parte do que seria a obra inteira de Caravaggio. De fato, para a história da arte pelo menos, a atitude de Del Monte de acolher o jovem pintor foi decisiva: nos anos seguintes, Caravaggio amadureceu como homem e artista; aprimorou o seu estilo e conheceu novos; pintou quadros de extraordinária beleza nos quais as características mencionadas acima foram magistralmente acentuadas tanto pelo uso formidável da técnica do chiaroscuro (o contraste entre luz e sombra) quanto – e talvez principalmente – pela imersão na inesgotável e perene temática católica.

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