Parte III – A resposta de um douto dominicano e a exímia prudência sobrenatural de Dom Lefebvre

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III – A resposta de um douto dominicano e a exímia prudência sobrenatural de Dom Lefebvre

Saindo do âmbito dos heterodoxos (que neste caso em que tratamos, estão materialmente corretos, mostrando que tal problema não fora percebido primeiramente por nós, muito menos inventado forçosamente por nós), passamos para a consulta de um grande nome da Tradição nos tempos de crise, conhecido por ter se debruçado em questões afins.

Nós nos referimos ao teólogo dominicano de Avrillé, o Frei Pierre Marie (autor de um conhecido estudo que demonstra cabalmente que as sagrações do rito novo, embora ilícitas, são em si mesmas válidas, porque a sua tônica ou acento sacramental que é a expressão “Spiritus Principalis” corresponde à tônica de fórmulas sacramentais de ritos de sagração episcopal aceitos pela Igreja concernente ao ofício episcopal, sendo a expressão corretamente traduzida ao português como “Espírito Soberano”), a quem apresentamos a tradução portuguesa da fórmula da Confirmação no rito novo em relação com a fórmula original em grego e latim, para o Frei analisar, dando-nos ao menos alguma luz para a resolução adequada do problema.

Eis que o Frei Pierre Marie, além de nos ter caridosamente respondido em correspondência particular, também caridosamente levou a público nossa questão para uma edição da conhecida revista da Tradição Católica “Le Sel de la Terre”: 

“Um leitor brasileiro nos escreve que, em seu país, a forma do sacramento da Confirmação “Accipe signaculum doni Spiritus Sancti (recebe o selo do dom do Espírito Santo)” foi traduzida por “Recebe, por este sinal, o Espírito Santo, o dom de Deus”. Esta tradução é claramente deficiente, pois todos os sacramentos são sinais que conferem o Espírito Santo. O próprio da confirmação é conferir o selo do Espírito Santo, um caráter.” LE SEL DE LA TERRE N° 127, HIVER 2023-2024, tradução e negritos nossos)

Impressionantemente, no mesmo ano em que houve a proposta de modificação da fórmula sacramental nos países lusófonos (1989), o magnânimo Dom Lefebvre, baluarte da Tradição Católica diante do caos conciliar, como bom pastor, atento e perspicaz, já havia também observado este problema das traduções da fórmula do Crisma no rito novo, exatamente no que se refere ao termo “sigillum” (que quer dizer o mesmo que “Signaculum”, mas na forma italiana, em que Dom Lefebvre citava de memória), e já havia se dado conta que, sendo tal termo parte da tônica sacramental, a tradução deturpada deste termo acarretaria uma dúvida positiva na fórmula sacramental.

Vejamos o que disse Dom Lefebvre:

“Quanto à validade duvidosa da tradução da nova forma latina que é “accipe sigillum Spiritus Sancti”. O que importa é o “sigillum”. Como ele é traduzido? Ele é sempre traduzido? “Recebe o selo” seria mais claro do que “seja marcado”. Mas acontece que se diz simplesmente: “Recebe o Espírito Santo”, o que é certamente inválido. Se “sigillum” for bem traduzido, não haveria dúvida sobre a forma. Caso contrário, há dúvida.” (Bulletin Officiel du District de France de la Fraternité Saint-Pie › de mai 1989, citada na edição 92 do “Le Sel de la Terre”, tradução e negritos nossos)

Alguns poderiam novamente insistir na objeção que os termos “selo” e “sinal” seriam intercambiáveis porque o caráter é um “sinal distintivo”, ou “sinal configurativo”, isto é, aquilo que além da imagem que fornece aos sentidos, faz conhecer algo diferente, que neste caso nos configura a Cristo, dando-nos uma potência espiritual que, no caso da crisma, distingue os soldados da milícia cristã, cristãos provectos, dos não-soldados, ainda incipientes, que são os simples batizados. Mas, como vimos, mais uma vez isto não se sustenta, porque é necessário se ater ao fato que nem todo sinal é um selo, embora todo selo seja um sinal, sendo propriamente o selo ou sinete/marca o que especifica o caráter sacramental, o efeito especial definitivo da Confirmação.

O caráter é invisível e também possui indiretamente função de signo, uma vez que todo Sacramento é realidade e signo (Res et Sacramentum), produzida infalivelmente em virtude do próprio rito exterior (Sacramentum tantum), cujo efeito último é a Res tantum (eficácia última do Sacramento que se dá a partir do aproveitamento dos frutos sacramentais conforme as disposições do sujeito que o recebe).

Além do fato principal que tal alteração da tradução não fora legítima, não é autorizada por exercício de magistério autêntico, extraordinário, nem ordinário, havendo, portanto, uma certa adulteração na tradução. Este é o ponto também decisivo que escapa a certas pessoas, e que mais compromete a certeza de sua validade, para além da errônea tradução em si mesma. 

As orações anteriores e imediatamente posteriores se apresentam ainda um pouco truncadas, mas a oração do prefácio da Missa de crisma não deixa mais dúvidas que se usa a palavra “selo”. Porém, esta oração é feita não no rito da Confirmação, mas após terminado o rito da Confirmação em si mesma, só estando presente já na Missa que a segue, o que não assegura a simultaneidade moral na celebração do Sacramento, uma vez que é recitada após a celebração do rito sacramental da Confirmação propriamente dito. 

Ocorre que, uma vez mais, mesmo que fosse este o caso, não basta para a fórmula ser válida, que expresse o significado do Sacramento. Ela deve ser legítima. Explica o padre Calderón:

A utilização de um rito não recebido pela Igreja (ab Ecclesia non receptus) não apenas implica um defeito de intenção [objetiva], mas também um defeito de forma. Pois, nos sacramentos cujo rito essencial não foi determinado em particular por Jesus Cristo, a forma não deve apenas ser verdadeira, ou seja, ter o sentido adequado das palavras conforme a instituição divina, mas também deve ser legítima, isto é, ter sido determinada em suas palavras pela instituição eclesiástica.” (Si las nuevas consagraciones episcopales son válidas, Revista Sí Sí No No p.3, tradução e negritos nossos).  

            Portanto, mesmo que a Santa Sé tenha concedido sua “recognitio” às versões adaptadas, essa concessão feita sob os moldes conciliares, marcados pela inculturação e ambiguidade, não equivale a uma promulgação magisterial infalível ou sequer segura.

Exposto isso, apenas uma sentença infalível do Magistério extraordinário ou ordinário poderia dar uma solução definitiva para esta questão muitíssimo complexa. Resta, portanto, alguma margem para perturbação de consciência:

Se quiséssemos completa tranquilidade de consciência, deveríamos pedir aos Papas uma declaração infalível para cada uma das versões vernáculas das formas sacramentais [e não a mera “ratificação” ou “confirmação” da adulteração das conferências episcopais, pois isto ainda não tem garantia de Magistério infalível]. Lamentavelmente, resta espaço para a controvérsia e para a perturbação de consciência”. (R.P Alvaro Calderón, Si las nuevas consagraciones episcopales son válidas, Revista Sí Sí No No, 2014, p.4, tradução, traves, e negritos nossos). 

Santo Tomás, Doutor Comum da Igreja, deixa isto muito claro em sua Suma de Teologia:

«A respeito de todas essas mudanças que podem ocorrer nas formas dos sacramentos, parece que duas coisas devem ser consideradas. Uma, da parte de quem profere as palavras, cuja intenção é requerida para o sacramento, como se dirá mais adiante. E, por isso, se ele pretende, por tal adição ou diminuição, introduzir um rito diferente daquele que foi recebido pela Igreja, não parece que o sacramento se realize [mesmo quando não se elimine o sentido devido das palavras], porque não parece que ele tenha a intenção de fazer aquilo que a Igreja faz. A outra coisa a considerar é do lado do significado das palavras [na consideração anterior, não é necessário ter em conta o sentido das palavras: elas poderiam conservar o sentido devido]. Pois, como as palavras operam nos sacramentos segundo o sentido que exprimem, como foi dito acima, é preciso considerar se, por tal mudança, o sentido devido das palavras é destruído — pois, assim sendo, é evidente que se destrói a veracidade do sacramento. Ora, é manifesto que, se se omite algo que pertence à substância da forma sacramental, o sentido devido das palavras é retirado, e, por isso, o sacramento não se realiza». (Sth III, q. a.8, tradução nossa).

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