Parte II – A questão do Crisma no rito novo e a tradução de sua forma sacramental aos países lusófonos

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II -A questão do Crisma no rito novo e a tradução de sua forma sacramental aos países lusófonos

Diferentemente da questão do Novus Ordo Missae, em que já houve resolução satisfatória do problema da reforma litúrgica em torno da Missa com trabalhos notáveis produzidos por grandes nomes da teologia e que continua a ser desenvolvido até hoje, não havíamos encontrado no tópico que agora abordaremos uma solução teológica satisfatória para este problema bem complexo e específico que se refere à questão do novo rito da Confirmação, mais especificamente, referente à tradução da sua fórmula sacramental, que influi na sua validade. Este é um tema que concerne a maioria de nós que nascemos em ambientes modernistas do Novus Ordo tendo sido crismados nos ritos ilegítimos da reforma litúrgica e que só conhecemos a Tradição Católica posteriormente, seja na adolescência ou na vida adulta. 

Todo católico suficientemente instruído deve saber que devemos ser tucioristas em matéria de Sacramento. Ou seja, não podemos admitir nenhuma dúvida positiva em relação à matéria, forma, ou intenção sacramental objetiva, pois se deve ter certeza moral suficiente que o Sacramento fora celebrado validamente, e no caso de Sacramentos que imprimem caráter (e que, portanto, recebe-se validamente uma só vez), uma vez constatada real dúvida positiva (não meramente uma dúvida negativa, genérica, um “e se”, mas uma dúvida fundamentada real e positivamente), deve-se buscar a restituição condicional do Sacramento, isto é, na condição de que a primeira vez tenha sido inválida.

É também ponto pacífico na Tradição que há um grave problema acerca da alteração da matéria na crisma do rito novo, em que se admitiu a utilização de outros tipos de óleos que o de oliva, o que até então era considerado unanimemente pelos teólogos como causa de invalidez do Sacramento, e que compromete potencialmente sua validade até hoje. Já houve um brilhante artigo do padre Gleize (FSSPX)[1] a este respeito, em que se trata do óleo de Oliveira propriamente dito como matéria necessária (não optativa) exigida pela Igreja para validade sacramental tanto da Confirmação como para Extrema-Unção[2]. Isto é uma exigência da Igreja tanto em âmbito latino, como em âmbito oriental, como se nota na Carta de profissão de Fé Católica da Sé Apostólica aos gregos:

5. Cada bispo, pois, nas próprias igrejas, no dia da Ceia do Senhor, pode preparar o crisma segundo as regras da Igreja, isto é, com bálsamo e óleo de oliveira. De fato, o dom do Espírito Santo é conferido pela unção com o crisma. E lemos também que a pomba, que designa o mesmo Espírito, levou para a arca um ramo de oliveira.[3]

No Suplemento da Suma de Teologia de Santo Tomás também e enfatiza isto em relação à extrema-unção: “No texto de São Tiago, o óleo é fixado como matéria desse Sacramento; ora, somente se fala de óleo, em sentido próprio, para o óleo de oliva. É, pois, esse óleo que é a matéria da Extrema Unção” (Suppl., q.29,a.4).

Porém, nós desconhecemos uma análise teológica séria e detida sobre a tradução da fórmula da crisma no rito novo nos países lusófonos, senão que apenas sabemos que, sendo um rito ilegítimo, e havendo um problema de autoridade em relação à sua promulgação, as más traduções da fórmula sacramental original também podem comprometer sua validade, sobretudo se alteram a tônica da fórmula sacramental. Mas isto era uma consideração geral[4], não sendo ainda abordada de forma específica.

Na falta de uma sentença autorizada e superior do Magistério infalível (ordinário e/ou extraordinário) da Igreja diante de uma questão tão importante, e na ausência de um labor teológico satisfatório sobre este tema em específico, resolvemos enfrentar esta questão devido à sua importância para todos os fiéis em geral já que o Sacramento da Confirmação é devido a todos, e em tempos de crise, o que era um Sacramento de conveniência para a Salvação, torna-se acidentalmente um Sacramento de certa necessidade moral para perseverar na guarda e defesa da Fé, que é o princípio ou prelúdio da Salvação.

É certo que para resolver tal questão, não iremos nos ancorar meramente no nosso próprio critério, mas sobretudo na autoridade teológica dos grandes nomes passados e atuais (tradicionais), e no critério muitíssimo perspicaz do maior herói da Fé dos tempos modernos que foi Dom Lefebvre, que chegou a abordar a questão, mas em âmbito predominantemente prudencial, e não propriamente teológico. Ocorre que decisões práticas ao longo do tempo vão exigindo uma resolução doutrinal que as justifique retamente, com idoneidade, sem enviesamentos. 

Reiteramos que neste tópico bastante árduo (que, mais uma vez, encaramos em razão do estado de necessidade oriundo da crise de autoridade magisterial, e também porque até então ninguém o havia feito satisfatoriamente do ângulo correto), as conclusões que chegamos são frutos de anos de pesquisa por fontes primárias e estudos quase diários, não sem consultar pessoas reconhecidas pela ortodoxia (isto é, reta profissão da doutrina católica de sempre), e principalmente por notório saber teológico em razão de ofício.

Também abarcaremos a análise materialmente correta até mesmo de pessoas heterodoxas e prestigiadas no modernismo (justamente na área de liturgia e Sacramentos), entusiastas da reforma conciliar, pois até elas puderam perceber o problema em questão, de modo que não se trata de frivolidades ou de “escrúpulos” nem de “trivialidades” ou “idiossincrasias” de rad-trad”, nem de “esteticismo”, ou qualquer alegação tola que modernistas nos façam.

Discorramos brevemente sobre a teologia do Sacramento da Confirmação: A finalidade de robustecimento para o combate espiritual e para o apostolado contra os inimigos externos da Igreja não é de maneira alguma um empobrecimento ou limitação do significado teológico do Sacramento da Confirmação, justamente porque não exclui, senão que supõe a plenitude dos Dons do Espírito Santo, em uma recepção singular deste como Dom definitivo pelo caráter crismal que sela a iniciação cristã, em ordem ao seu cume que é a Santíssima Eucaristia, o culto a Deus por definição e excelência: a Santa Missa, Sacramento e Sacrifício.

É justamente por estar repleto do Espírito Santo selado com a plenitude dos Seus Dons que nos é comunicada a Graça específica de anunciar com parresía (isto é, com franqueza destemida e caridosa) as maravilhas de Deus contra as adversidades e inimigos da alma, sendo o Sacramento da plenitude da Graça, que nos capacita ontologicamente com a plenitude dos Dons do Espírito Santo para defender as coisas sagradas primeiramente em nós e a partir disso, no nosso próprio ambiente. A dimensão interior de santidade é assegurada, mais consolidada pela capacitação da luta exterior em defesa das coisas sagradas para que sejam melhor recebidas por nós mesmos e pelos demais que se beneficiam de nossa defesa contra os inimigos visíveis da Igreja. A Confirmação nos confere essa capacitação pelo caráter sacramental que opera em nós principalmente a fortaleza para lutar eficazmente contra o mundo (entendido como o “âmbito das concupiscências”) enquanto inimigo da alma, com suas ofertas e falsas máximas. 

Por isso o Sacramento da Confirmação é importantíssimo, e deixar para segundo plano a dimensão da pugnacidade na defesa da Fé como uma Graça sacramental específica deste Sacramento, é justamente empobrecê-lo, tratando-o como “Sacramento adjunto” ao Batismo, como algo supérfluo (ou no mínimo favorecendo grandemente neste sentido) tal como fazem os modernistas, entorpecidos pelo arqueologismo e pretendendo-se superiores à autoridade da Igreja.

Deve-se, portanto, enfatizar sempre o crescimento na Graça santificante e robustez espiritual, sua dimensão ontológica e a partir dela, sua dimensão operativa, pois o agir segue o ser. É-se assinalado com o sinal da Cruz e confirmado com o crisma da salvação para dar testemunho público da Fé católica, das maravilhas da Graça divina recebida em plenitude neste Sacramento pela abundância dos Dons do Paráclito. 

O recebimento dos Dons do Espírito Santo é indicativo do Sacramento que opera por si mesmo, e seus efeitos não são sensíveis, o caráter do Espírito Santo é impresso no intelecto prático, e seus efeitos embora possam em certos casos serem percebidos imediatamente (pela inteligência, não sensivelmente), estes costumam ser percebidos ao longo do tempo na medida em que não se coloca obstáculos aos Dons do Espírito Santo comunicados em plenitude no Sacramento, se o recipiente se prepara bem para corresponder à Graça. O que é imperativo da parte do fiel são suas disposições para corresponder aos frutos da Graça sacramental, que, repitamos, não são essencialmente sensíveis, pois não atuam diretamente nas potências inferiores da alma, mas essencialmente no intelecto, podendo redundar nos sentidos ou não.

Partimos, então, de um ponto pacífico (ou que ao menos deveria sê-lo) aos fiéis da Tradição Católica: A revolução litúrgica capitaneada por Bugnini sob os auspícios do Papa Paulo VI e seus ritos são ilegítimos, ainda que possam ser válidos. O novo rito da Confirmação é ilegítimo, não porque nós o determinamos assim segundo o nosso capricho ou palpite (que para nada serve nestes temas), mas porque este rito não foi objeto de verdadeira autoridade magisterial, bem como a reforma litúrgica em geral, sendo apenas um marco sugerido pelo Papa a ser constantemente adaptado e inculturado pelas conferências episcopais, num movimento democratista de descentralização da autoridade papal como quer a inovação da colegialidade.  

Para compreender isto, é preciso fazer uma exposição sumaríssima do livro que decifrou o enigma conciliar e sua autoridade magisterial: a Candeia debaixo do Alqueire, do brilhante padre Álvaro Calderón.

Estamos cônscios que a resolução do presente problema só pode ser alcançada quando se decifra o enigma em torno da natureza do “magistério conciliar”, e após estudar por vários anos sua obra e muitas outras referente aos mesmos assuntos, estamos convencidos que o Reverendo Padre Álvaro Calderón o fez de modo solidíssimo, sem faltar com a coerência doutrinal, sem cair em aporias teológicas insolúveis, e sem incorrer em qualquer heresia ou em uma posição de cisma.

Do contrário, se não for via Calderón, o católico sempre será atingido por um dos chifres do touro nomeados pelo autor da tese (sedevacantismo, neomodernismo/continuísmo, progressismo, tradicionalismo crítico, apostasia, loucura), que acabam atentando contra a Fé, ou negando seus mesmos pressupostos, caindo sempre ou quase sempre no erro de se arrogar em “juízes” ou “árbitros” do Magistério da Igreja, o que não é legítimo. Este é inclusive o problema do tradicionalismo crítico, que vamos tratar logo adiante.

Obviamente que não é possível neste trabalho discorrer ponto por ponto da tese do padre Calderón, o que exigiria um artigo (ou um livro) à parte, mas a nível de sinopse, como referencial teórico basilar, tomaremos a exposição do escritor católico Leonardo Brum, que exprime de modo muito fidedigno uma sinopse da obra (cuja densidade e complexidade nos impede de tratar aqui com todas as suas principais nuances) e suas conclusões gerais, lembrando que tal sinopse jamais dispensa a sua leitura, apenas serve para tomarmos à guisa de conclusão, como princípio e fundamento de nossa análise, sem perder a coerência e consistência doutrinal. Explica Brum:

“A idéia central da tese do Pe. Calderón é a de que, desde o Concílio Vaticano II, não houve mais exercício formal do Magistério Eclesiástico [no sentido de explicar e aplicar]. Este fato não é nada evidente, pois não faltam documentos emanados de Roma nos últimos 40 anos[5]. Conseqüentemente, tal fato necessita ser demonstrado e foi preciso um livro inteiro para fazê-lo. O ideal é que se leia “A Candeia Debaixo do Alqueire”, mas pode-se falar do conteúdo do livro por aqui em linhas bem gerais.

Primeira distinção teológica: o Magistério Autêntico da Igreja tem por órgãos autênticos o Papa e os Bispos sob algumas modalidades (declaração ex-cathedra, concílio, etc.) e pode ser classificado em “infalível” e “meramente autêntico”. O infalível tem grau máximo de autoridade enquanto o meramente autêntico comporta diversos graus que equivalem ao grau de assistência do Espírito Santo ao magister. Mesmo possuindo eventualmente um grau de autoridade ínfimo, o Magistério Autêntico da Igreja exige submissão e docilidade da alma católica.

Segunda distinção teológica: uma mesma pessoa física pode comportar mais de uma pessoa moral. Assim, o mesmo Francisco [hoje seria o Papa Leão XIV], por exemplo, pode atuar enquanto Papa, enquanto bispo de Roma e enquanto teólogo privado.

Postas as premissas, o livro está dividido em quatro artigos em forma de disputatio. Pe. Calderón demonstra primeiramente que o magistério conciliar não foi infalível. Depois, que o magistério conciliar pode ser posto em discussão por ter sido exercido ao modo dialogado e não impositivo, mas disso decorre a terceira demonstração que é a de que o magistério conciliar possui zero grau de autoridade. Ele não é nem mesmo Magistério meramente autêntico. Não há nele a mais ínfima assistência do Espírito Santo e este fato tem importantes conseqüências:

– O magistério conciliar não exige submissão dos fiéis;

– Os fiéis não só tem o direito de negarem submissão a tal magistério, mas o dever de se lhe opor à medida que ele contraria o que a Igreja sempre ensinou;

– O papa e os bispos não atuam enquanto tais, mas enquanto teólogos privados ao exercerem o magistério conciliar;

– O magistério conciliar não pode ser formalmente atribuído à Igreja Católica.

Isto corrige a problemática postura teológica daqueles que o Pe. Calderón chama de “tradicionalistas críticos”, ou seja, aqueles que reconhecem o concílio como magistério autêntico, mas que se acham no direito de criticá-lo pelo simples fato de que ele não é infalível. Tal postura só dá margem para que os modernistas ponham em discussão todo o magistério ordinário das Encíclicas anti-liberais, desde a Mirari Vos, de Gregório XVI, à Humani Generis, de Pio XII, passando pela Pascendi, de São Pio X Ora, o magistério das Encíclicas é, via de regra meramente autêntico.

A tese também é contrária ao sedevacantismo pois, se o magistério conciliar é uma espécie de exercício material (mas não formal) do Magistério da Igreja, isto se deve apenas ao modo dialogado de tal exercício e não do suposto fato de que o papado é material ou coisas do gênero. O Papa não perdeu sua autoridade. Ele apenas não a exerce efetivamente e sim de modo aparente.

O último artigo do livro é bem interessante, pois trata de um eventual comprometimento indireto da autoridade do magistério conciliar. Assim, Pe. Calderón fala sobre a Missa Nova, os movimentos eclesiais, as supostas aparições marianas, as canonizações, o Código de Direito Canônico, entre outros.”

É importantíssima a refutação do “tradicionalismo crítico” feita pelo padre Calderón, pois se trata de uma solução simplista que não se sustenta coerente ou consistentemente, nem legitima o apostolado heroico de Dom Lefebvre e Sua Fraternidade, Dom Mayer, e mesmo o apostolado bastante fecundo de leigos como Gustavo Corção e Orlando Fedeli, que combatiam os erros do Concílio Vaticano II e da Missa nova publicamente (o que jamais poderia ser feito a um ato magisterial autêntico, mesmo não-infalível, pois não pode haver equívoco completo, ou erro sério e grave contra Fé em um ato assistido pelo Espírito Santo em algum grau, mas apenas equívocos parciais, certas falhas de expressão, ou imprecisões, mas nunca algo que cause prejuízo à própria Fé ou que leve ao pecado, sendo terminantemente proibido qualquer rechaço categórico, ainda mais se for público[6]). Lembrando que a deposição de autoridade vaticano-segundista é quanto ao múnus magisterial, o que não impede (pelo contrário, reforça) o abuso da autoridade de governo (em maior ou menor grau), pois em verdade as duas coisas estão conjugadas e se retroalimentam: modo liberal do exercício do magistério e maquiavelismo/tirania de governo. Não há contrdição. Quanto ao “tradicionalista-crítico”, afirma Calderón:

“O ‘tradicionalista crítico’ cai na muito humana tentação de simplificar a solução do enigma e, para poder aplicar o princípio claro e certo da subordinação do magistério à tradição, diz em geral de todo e qualquer magistério não infalível o que vale em particular somente para o magistério conciliar totalmente falível — pondo no mesmo saco todos os graus de magistério simplesmente autêntico. Mas, ao buscar na tradição os princípios necessários para seus argumentos, vê que está tudo dito (princípios e conclusão) no magistério antimoderno anterior. Pois bem — perguntamos —, por que vale este magistério, se não se pode afirmar que seja ex cathedra em sua maior parte? Porque é evidente — responde — que ele está, sim, em continuidade com a tradição. Então — advertimos — já não valeria por si mesmo, mas na medida em que demonstremos sua ligação com princípios infalíves de mais antiga tradição. Ah! cuspimos para o alto e volta-se contra nós mesmos o desprezo. Como vimos no corpus do artigo, não há nada que o modernismo queira mais que julgar o magistéro ‘á luz da tradição’: o neoteólogo, imerso no presente histórico-cultural e provido de seu singular sensus fidei, contempla a Tradição-per-se no exemplar platônico das Escrituras e provoca a evolução da tradição-participada do dia de ontem, expressa pelo magistério de ontem, segundo a mentalidade de hoje. Ontem o Padre Ratzinger e seus colegas julgaram o magistério antimoderno ‘à luz da tradição [per se]’ e provocaram o Concílio Vaticano II; hoje julguemos todo o magistério conciliar ‘à luz da tradição’: Estamos de acordo! — dizem-nos de Roma —, mas, por favor!, à luz da grande tradição do Evangelho e não da tradição entendida pelos Papas Pios, porque não se deve voltar ao Vaticano Primeiro, mas chegar logo a um Terceiro. Caveamus! A Hierarquia conciliar aceita que se discuta o Concílio, mas, se aceitarmos nós, simples fiéis, que se ponha em discussão o magistério simplesmente autêntico anterior, o catolicismo estará perdido.” (Pe. Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, Editora Sétimo Selo, pp. 142-143)

A posição do “tradicionalismo crítico” invariavelmente insere o fiel como árbitro do Magistério, o que revela uma incompreensão da real natureza do Magistério não-infalível (que por sua vez leva para certa homogeneização deste), e do assentimento devido aos seus respectivos graus, buscando resolver um problema especial por uma causa geral sem levar em consideração que o chamado “magistério conciliar” é um modo sui generis de exercício magisterial, de natureza distinta, ainda que o Sujeito magisterial seja o mesmo.

Tal posição além de levar invariavelmente à indocilidade para com o Magistério da Igreja, acaba por legitimar aquilo que os neomodernistas se especializaram em fazer: contrariar o Magistério autêntico da Igreja, querendo reduzir seu alcance normativo à um determinado contexto sociopolítico-eclesial, a modo historicista, ou mesmo negar frontalmente suas sentenças, definições e condenações alegando que eram “frutos de decisões eclesiais contingentes.” Tudo isso acompanhado da adoção do pluralismo teológico que lhes deixam “tranquilos na indefinição”:

“Mas a Hierarquia conciliar, ferida pelo moderno ceticismo subjetivista, degrada a doutrina à categoria das construções humanas e pretende fundar sua autoridade na misteriosa presença ou assistência de Cristo ou do Espírito Santo na comunhão vital da Igreja. Agora já não seria a verdade (= a doutrina celeste) o fundamento da unidade, mas sim a unidade o fundamento da verdade (= as ideologias multicores). O que une seria verdadeiro, e falso o que divide, porque — argúem — ali onde há dois ou mais vitalmente unidos em nome de Cristo, ali e só ali se manifestaria a Verdade. Agora, curioso, só é herege o cismático, e é cismático não o que não obedece, mas o que não convive. Por isso estaria mais na Verdade o ecumênico rabino que o isolado Mons. Lefebvre.” (Pe. Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 238)

É justamente isso que Calderón busca resolver, mantendo a docilidade devida do católico a todos os graus de Magistério autêntico da Igreja a ser reconhecido de maneira manifesta e notória pelo comum dos fiéis, não apenas por teólogos, pois se o Magistério da Igreja exigisse que cada fiel fosse um teólogo para poder assentí-lo devidamente, a Igreja teria terminado já nos primeiros séculos, e consequentemente, a Promessa de Nosso Senhor teria falhado, o que é impossível.

Portanto, é necessário que todo Magistério autêntico seja possível de exigir notória, clara e seguramente a dócil e filial anuência do comum dos fiéis, não exigindo de antemão um fino e excelente hábito teológico de cada fiel, ou um sutil discernimento de espíritos para avaliar a veracidade dos próprios atos magisteriais, mas justamente o contrário: é pelas sentenças e definições do Magistério que o fiel (do mais rude ao mais douto) vai formando seu hábito teológico, pois a Igreja é Mãe e Mestra, sendo o Magistério eclesiástico o melhor dos pedagogos, pois é partícipe por causalidade instrumental da autoridade do próprio Cristo, estando sempre divinamente assistido em algum grau pelo Espírito Santo. Aqui nos referimos às definições magisteriais, e não às muitas vezes complexas disputas teológicas realizadas previamente às mesmas definições.

Seria certa crueldade, tirania, algo incompatível com o ofício de Mãe e de Mestra, exigir uma alta qualificação prévia de todos os seus filhos para que pudessem entender de maneira notória o que ela lhes transmite. Em teologia, preocupa-se primeiramente em saber “Quem diz” e “como diz” depois se vê o “quê se diz”, uma vez que tal ciência subalterna parte necessariamente dos princípios revelados oriundos da Verdade Primeira em Si mesma, cuja autoridade divina é muitíssimo mais certa que os mais seguros princípios da razão. A adesão do católico, uma vez verdadeiramente convertido, é a de prestar uma Fé de autoridade no Magistério eclesiástico, não uma fé de credibilidade.

É por esta razão que se pode dizer que o Magistério Autêntico da Igreja, regra próxima da Fé, é sob certo aspecto, superior à própria Fé (e obviamente superior à própria razão humana, já que a Fé teologal supera o alcance e escrutínio da razão e mesmo o alcance de qualquer inteligência criada, ainda que jamais contrarie a razão, senão que a eleva sobremaneira, a um nível de entendimento que nenhuma inteligência criada poderia alcançar por suas meras forças naturais, nem mesmo a mais potente inteligência angélica), uma vez que aquele que regra é superior ao que é regrado.

É mister observar que as grandes Encíclicas magisteriais dos séculos XIX e XX são, via de regra, Magistério meramente autêntico, sendo no máximo alguns documentos pertencentes com certeza ao magistério ordinário infalível (sendo que em outros documentos não há sequer consenso entre os teólogos sobre o seu exato grau de autoridade, e nem se deve insistir em distinguí-los, dada a enorme autoridade com o qual foi exercido solenemente, como doutrina certa, o que torna tais distinções acrca destes documentos sem importância), mas os documentos que condenam os erros modernos via de regra são do magistério meramente autêntico, e nem por isso deixam de ter enorme autoridade, pela firmeza e pela solenidade com que foram exercidos. 

Padre Calderón aborda nesta obra com brilhante justeza teológica a questão da autoridade da Sagrada Congregação para o Culto Divino, especialmente no contexto da reforma litúrgica pós-conciliar, e aborda o valor de sua intervenção na aprovação ou confirmação de fórmulas sacramentais propostas pelas conferências episcopais:

“Portanto, se o magistério conciliar em seu objeto primário não só não é infalível, não só não tem nenhuma autoridade, mas deve ser evitado por ser corrosivo da fé, não pode mudar de natureza com respeito a seu objeto secundário: não pode ser infalível nas canonizações, nem nas leis litúrgicas, nem nas leis canônicas, nem na aprovação de novos institutos, nem no discernimento de aparições, nem em nada. De todas essas coisas o cristão fiel e prudente se vê obrigado a desconfiar, pois brotam de uma fonte contaminada.” (Pe. Álvaro Calderón, “A Candeia Debaixo do Alqueire”, p. 183)

 A obra do Pe. Calderón propõe uma leitura coerente, consistente e profundamente fundamentada que soluciona (a nível especulativo, claro) a crise da Igreja pós-Vaticano II sem incorrer em indocilidade (mínima que seja) ao Magistério autêntico da Igreja e sem perder a consistência no rechaço aos erros conciliares. Sua principal contribuição é demonstrar de maneira antecedente que o chamado “magistério conciliar” (isto é, exclusivamente as inovações do concílio, e não toda e cada palavra ou toda e cada página contida nos documentos conciliares) não apenas carece de infalibilidade, mas não pode sequer ser considerado um verdadeiro Magistério Autêntico, devendo ser evitado por ser corrosivo à Fé, e o mesmo se diga do seu objeto secundário. Esse reconhecimento esclarece tanto sobre os erros do tradicionalismo crítico quanto os erros do sedevacantismo, do neomodernismo, e do progressismo, oferecendo uma solução teológica muito sólida e equilibrada, e sobretudo, uma solução doutrinal verdadeira para a crise atual da Igreja.

Sabemos que, embora suas conclusões sejam simples e acessíveis ao comum dos fiéis (como deve ser, segundo assinalamos), o desenvolvimento da tese do reverendo padre é complexo, permeado de necessárias distinções delicadas, finas, que requerem tempo hábil para assimilá-las bem e apreender seus argumentos, além de exigir ao menos uma formação inicial suficiente na doutrina católica, e na teologia fundamental. Devido à má formação e amadorismo de muitos meios, a tese do padre é alvo de diversos espantalhos e caricaturas, de continuistas (neomodernistas) e mesmo de alguns ditos “tradicionais”, que muitas vezes criticam sem sequer tê-lo lido, não raro por clubismo. Mas suas conclusões são claras e manifestas à inteligência comum.

Para desfazer desde já certas incompreensões e espantalhos mais comuns, também vamos listar o que a tese da Candeia debaixo do Alqueire definitivamente NÃO É: 

1- A tese de Calderón NÃO É a adoção de uma “concepção unívoca de Magistério que trata todos os seus atos como se fossem infalíveis”, mas justamente combate a homogeneização do Magistério não-infalível, pois até o exercício do magistério não-infalível comporta graus de autoridade

2- A tese de Calderón NÃO afirma um estado de necessidade permanente, e obviamente NÃO afirma que a totalidade moral dos fiéis perdeu a Fé (ele justamente contraria esta heresia tão comum nos meios sedevacantistas explicitamente no livro, pois é impossível que a totalidade moral dos fiéis defeccione na Fé, embora possa defeccionar a maioria), nem que haja uma “Igreja Bifásica”, ou “duas Igrejas” em sentido literal ou estrito, simplesmente não há nada que se conclua neste sentido em seu livro.

3- A tese de Calderón NÃO faz uma “ampliação propositada da noção de suplência”. Ela justamente confere as bases e contornos bem definidos para delimitar sua correta extensão.

4- A tese de Calderón NÃO SE TRATA de “magistériovacantismo” NEM OPÕE o “Magistério tradicional de ontem” com o “magistério conciliar de hoje”, e sim diz que o Magistério tradicional é perpétuo e vivo até hoje na função magisterial de “transmitir”, enquanto o “magistério conciliar” que abarca a função de “explicar” e “aplicar” seria um outro modo de fazer magistério, com uma outra natureza, ainda que exercida materialmente pelo mesmo Sujeito Magisterial, pois uma pessoa física pode exercer mais de uma pessoa moral.

5- A tese do Calderón NÃO É JAMAIS um “livre-exame do Magistério”, pois o que ela busca é justamente evitar isto em todos os aspectos. Quem faz “livre-exame” do Magistério são os neomodernistas e, em parte, os “tradicionalistas críticos”. Quando se diz que se deve avaliar os documentos conciliares e distinguir teologicamente os que estão em conformidade com a Tradição, os que são ambíguos nas passíveis de interpretar à luz da Tradição, e aqueles que constituem propriamente o que se denomina de “magistério conciliar”: inovações proscritas pelo Magistério tradicional frutos de um vício formal de intenção magisterial pela adoção de um modo de exercer o Magistério alternativo e alheio ao exercício autêntico, não se está jamais fazendo “livre-exame”, uma vez que foi este próprio modo de exercício de magistério que deu ao fiel esta faculdade.

Não há “livre-exame” do Magistério, nem “livre-exame” de Dom Lefebvre, como fazem tradicionalistas críticos, e os detratores de Dom Lefebvre, como os continuístas e sedevacantistas. A tese de Calderón possui como germe a posição mais amadurecida de Dom Lefebvre, sua resolução definitiva, encerrado o período de perplexidade, e o período de tratativas infrutíferas com as autoridades romanas infectadas pelo neomodernismo e sua linguagem sinuosa.

Devemos levar em consideração um dos pontos-chaves de sua tese: O magistério tem dois objetos: o primeiro, doutrinal, e o segundo prático (excomunhões, leis litúrgicas, canonizações, discernimento de aparições e demais atos). Mas os atos do segundo só têm autoridade real se se fundam em ato infalível ou certo do objeto primário. Como doutrinalmente o magistério conciliar nem é autêntico porque ele mesmo depôs sua autoridade doutrinal (ainda que exerça abuso da autoridade de governo), por conseguinte tampouco têm qualquer autoridade os seus atos do objeto segundo. O que inclui a tradução modificada das formulas sacramentais. 

Calderón observa que, após o Concílio Vaticano II, houve uma mudança significativa na atitude da autoridade suprema da Igreja. O Papa transferiu parte de sua autoridade aos bispos; estes, por sua vez, delegaram-na aos teólogos; e os teólogos passaram a ouvir mais o homem moderno, cuja voz, supostamente “dotada do sensus fidei”, era maciçamente influenciada pelo vendaval da opinião pública, isto é, pela publicidade, propaganda de massa, efêmera.

 Explica o próprio Pe. Calderón:

“Na hora, então, de julgar acerca do estatuto teológico-canônico da reforma, não se deve esquecer a novíssima natureza jurídica das leis litúrgicas conciliares. As novas normas litúrgicas promulgadas pela Santa Sé não são mais que um marco, de limites totalmente imprecisos, de acordo com o qual as conferências episcopais devem determinar os novos ritos adaptados. Roma declara-se oficialmente incompetente para a determinação última das leis litúrgicas, porque o Papa não está in loco para julgar as adaptações ao gênio de tal ou qual povo. Hoje, por exemplo, a Congregação do Culto pode pedir uma melhor tradução do ‘pro multis’, mas não o pode exigir, porque está previamente estabelecido que o julgamento sobre a conveniência local das versões vernáculas cabe às conferências episcopais. (…) Se se levam em conta todas essas originalidades das disposições litúrgicas conciliares, é ridículo pretender julgá-las com os critérios discernidos pelos teólogos na legislação romana anterior.”[7]  (Pe. Álvaro Calderón, “A Candeia Debaixo do Alqueire”, Editora Sétimo Selo, 2009,  p.246-247, negritos meus)

E conclui o teólogo, acerca da reforma litúrgica: “A Sede de Pedro não promulgou nenhuma lei litúrgica universal [quando da reforma conciliar], mas ao contrário, oficializou a anarquia.” (a Candeia debaixo do Alqueire, Editora Sétimo Selo, 2009, P. 247, negritos meu)

Portanto, a reforma litúrgica conciliar não compromete a infalibilidade do Magistério por várias razões, que podemos resumir assim:

Ausência das quatro condições do magistério infalível, e mesmo de infalibilidade negativa ou indireta: Em primeiro lugar uma lei litúrgica não é automaticamente infalível, tendo ela uma dimensão prática e outra propriamente doutrinal, este último estreitamente conexo com o dogma (sendo neste aspecto certamente infalível quando realmente promulgada uma lei litúrgica universal). Mas os novos ritos oriundos da reforma litúrgica conciliar, mesmo os oficializados por Roma, não cumprem adequadamente ao menos três das quatro condições vaticanas exigidas para um ato magisterial infalível (matéria de fé e costumes, proposta à Igreja universal, com intenção clara de definir doutrina certa e tenenda).

A “reforma litúrgica” apresenta uma notória indefinição doutrinal, com fundamento incerto, uma descentralização e inculturação em sua promulgação. Uma das evidências mais claras disso é o fato de não existir uma Missa nova que seja precisamente igual a outra, em todos ou mesmo na maioria dos lugares (jamais se recomenda verificar tais a aberrações presencialmente, basta constatar com duração estritamente suficiente, a modo remoto – não sem um bom “engov”– pelos diversos vídeos existentes de “Missas temáticas” com aval do Ordinário local, e mesmo celebradas por este), e aqui não estamos falando de abusos improvisados do celebrante no momento em que “preside a assembleia”, mas sim das inúmeras inculturações e adaptações constantemente feitas pelas próprias conferências episcopais, ou pelas suas sub-divisões em regiões, e isto é evidente, não é sequer preciso demonstrar.

Percebe-se claramente que o Novus Ordo é um rito plástico com um fundamento doutrinal incerto, a ser indefinidamente adaptado conforme o variável sentir do povo de Deus em determinando contexto histórico-geográfico/cultural.

“As inovações litúrgicas introduzidas por Roma sempre se tinham seguido aos esclarecimentos doutrinais do magistério: “Como as coisas relacionadas com o culto”, dizia Pio IX em Inefabilis Deus, “estão íntima e totalmente ligadas a seu objeto, e não podem permanecer ratificadas e fixas se este fica envolto na vagueza e na ambiguidade, nossos predecessores, os Romanos Pontífices, que se dedicaram com todo o esmero ao esplendor do culto da Imaculada Conceição, dedicaram também todo o seu empenho em esclarecer e em inculcar seu objeto e doutrina” ‘. O Vaticano II, em contrapartida, vai promover uma refundição total da liturgia de acordo com uma misteriosa doutrina, não só absolutamente ausente dos ensinamentos do magistério hierárquico, mas também esboçada por um grupelho de teólogos suspeitos de heterodoxia: a doutrina do “mistério pascal” (…)Os princípios diretivos da Constituição” “, dirá João Paulo II ao se cumprirem os 25 anos da Sacrosanctum Concilium, “que serviram de base para a reforma são fundamentais para conduzir os fiéis a uma celebração ativa dos mistérios [..]. O primeiro princípio é a atualização do mistério pascal de Cristo na liturgia da Igreja”. Mas, se procuramos no magistério anterior ao Concílio, não aparece nem o nome “mistério pascal” tampouco nos tratados clássicos de teologia. Nos próprios documentos conciliares, é mencionado como doutrina fundamental, mas não é explicado. É preciso recorrer às obras da “nova teologia” para vê-lo aparecer como total novidade, de que cada neoteólogo dá uma versão pessoal. Só então se pode vislumbrar o porquê de mudanças tão profundas nos ritos litúrgicos. Não faltava razão a João Paulo II quando, poucos meses antes da Carta citada, reconhecia que uma das causas da resistência tradicionalista residia “nos pontos doutrinais que, talvez por sua novidade, ainda não foram bem compreendidos por alguns setores da Igreja”. Essa maneira de agir corresponde certamente à nova relação entre magistério e teólogos estabelecida pelo Concílio, segundo a qual àquele já não cabe ensinar uma doutrina perene, mas unificar e autenticar o que estes percebem hoje no Povo de Deus. Mas, ainda que nada entenda de tudo isso, o simples fiel tem o direito de rejeitar uma reforma litúrgica substancial cujo fundamento doutrinal é incerto.[8]

Permeada, então, por esta indefinição, inculturação, e descentralização da autoridade papal às conferências episcopais, e por uma nova concepção sobre a relação entre o Magistério e teólogos (que se afasta da concepção tradicional), a própria reforma, como se observa, é marcada pela deposição do exercício da autoridade central romana, transferindo decisões a instâncias locais para serem “inculturadas” indefinidamente em cada época e local. Isso inclui descentralizar para as conferências episcopais a possibilidade para adaptar traduções (como no caso de “signaculum” ser vertido como “sinal”, já o veremos). Tal transferência e elimina o caráter universal e vinculante do ato, um requisito fundamental para que se comprometa o Magistério infalível em leis litúrgicas universais.

Em suma, segundo Pe. Calderón, da mesma forma que o magistério conciliar em razão de habitual e manifesto defeito de intenção magisterial (não só em seus atos, mas também nas circunstâncias anteriores, simultâneas e/ou posteriores que orbitam estes atos) não é o Magistério Eclesiástico, mas algo de natureza diversa, o mesmo ocorre com a reforma litúrgica conciliar em relação às autênticas leis litúrgicas universais. Estabelecido isto, é imperioso concluir que não se pode aplicar o que dizem os bons teólogos do passado acerca da infalibilidade das referidas leis litúrgicas universais anteriores como princípio e fundamento para analisar a reforma litúrgica conciliar, porque esta possui uma natureza diversa dos atos que pertencem ao objeto segundo do Magistério autêntico da Igreja, pré-conciliar.

A partir disso, partamos agora de outro princípio claro sobre a Crisma no rito novo, que deve ser indiscutivelmente aceito por todo católico: A fórmula sacramental original da Crisma no rito novo é em si válida, pois é uma fórmula extraída de um rito reconhecido pelo Magistério autêntico da Igreja: “Selo do Dom do Espírito Santo/Sfrágis dōreás Pneúmatos Haguíou” (Σφραγὶς δωρεᾶς Πνεύματος Ἁγίου, em grego, no rito bizantino), que em latim o Papa Paulo VI acrescentou o verbo “Accipe” (Recebe), ficando “Accipe Signaculum Doni Spiritus Sancti” (Recebe o Selo do Dom do Espírito Santo). Este acréscimo obviamente não retira nem altera a essência do Sacramento.

Entretanto, o problema reside na tradução desta fórmula sacramental aos países lusófonos, pois altera-se o termo-clave da tônica sacramental “Signaculum” (selo, sinete, sigilo, marca) para “sinal” (Signum), inserindo-o equivocamente, dando a entender que tal sinal é um meio de transmissão do Espírito Santo, obscurecendo a significação do caráter sacramental próprio da Confirmação, que é ser selado com o Dom do Espírito Santo.

A tradução dos termos latino signaculum e grego sphragís como “sinal” na fórmula da Crisma no rito novo não expressa adequadamente o significado original dos termos em grego e em latim, que seriam corretamente traduzidos como “selo” ou “marca”. Algo indelével, impresso na alma, mais especificamente na potência intelectiva, no intelecto-prático, uma vez que o caráter é uma potência espiritual que nos ordena ao culto divino. Em verdade, a presente tradução prejudica o próprio sentido da fórmula sacramental.

No contexto bíblico e teológico, sphragís frequentemente se refere a um selo que indica propriedade ou autenticidade, como em Apocalipse 7,2, onde os servos de Deus são “selados” na fronte. Da mesma forma, signaculum no latim carrega a ideia de um selo que confere uma marca indelével, compreendida como consagração, como pertença a Deus.

Por isso, traduzir esses termos como “sinal” é inadequado, pois “sinal” sugere algo mais genérico (no caso dos Sacramentos) ou de efeito temporário. De um certo modo, todos os Sacramentos são sinais que transmitem ou aumentam a Graça do Espírito Santo. Já “selo” ou “marca” transmite a ideia de uma operação permanente, realizada pela impressão de um caráter definitivo, de um selo indelével que nos capacita ontologicamente, ordenando-nos ao culto divino segundo um modo específico. No caso da Crisma, o caráter nos capacita ontologicamente para a defesa das coisas sagradas e principalmente par a defesa da Suma Santidade feita carne, sob os acidentes de pão: Nosso Senhor-Sacramentado, Jesus Eucarístico, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, Diviníssimo alimento que nos é dado como Penhor da Vida Eterna.

O católico bem formado sabe que se trata de uma honra imerecida poder defender Nosso Senhor, testemunhá-Lo (por obras e palavras) ante os homens, com a parresía que dada pelo selo do Espírito Santo (pois em verdade somente se pode confessar que Cristo é o Senhor, Sumo Sacerdote e Divino Rei de todo o universo através do Espírito Santo), que é uma potência espiritual impressa em nossa alma na Confirmação. Cristo é Rei por Geração Eterna, Pela União Hipostática, e por Redenção realizada no Calvário, no Madeiro da Cruz. Trata-se de maravilha inefável e configura a própria maturidade cristã ser investido pela Confirmação como soldado do Senhor Rei dos Exércitos, Alfa e Ômega, a Verdade, Sumamente Santo, Sumo Sacerdote e Rei dos reis… É algo tremendo afirmar que se é soldado de um Reino que não terá fim, e cujo caráter batismal fortalecido pelo caráter crismal faz com que de certa maneira participemos da ordem Hipostática (algo tremendo, em que a melhor teologia hoje já não pode deixar de concluir), em que Cristo opera em nós e conosco o culto de mérito infinito dado ao Pai.

A tradução da fórmula latina da Crisma “Accipe signaculum doni Spiritus Sancti” para o português como “Recebe, por este sinal, o Espírito Santo, o Dom de Deus”, em vez de “Recebe o selo (ou sinete) do Dom do Espírito Santo”, foi alvo de críticas sérias até mesmo por parte de liturgistas e teólogos heterodoxos que ao menos neste âmbito defendem a fidelidade ao sentido teológico tradicional da fórmula, mesmo os neomodernistas mais entusiastas da reforma litúrgica conciliar.

Ao sinal e gesto externo deve acompanhar a fórmula contendo a tônica sacramental que explicite suficientemente o seu sentido. A fórmula da crisma bizantina enfatiza a ação sacramental (doni) sendo o selo/marca como efeito criado da assinalação (signaculum) intrinsecamente unido ao Dom incriado que é o Espírito Santo. O “Dom do Espírito Santo” é um genitivo de identidade ou de aposição, que não significa uma coisa diferente do substantivo do qual depende. Ou seja, significa o próprio Espírito Santo enquanto Dom Incriado gratuito, fonte de todos os outros dons, e o Signaculum ou selo/sinete/marca é o seu caráter, o efeito interno criado que acompanha o gesto da assinalação. O duplo genitivo em sentido de aposição significa isto: “Seja selado (efeito criado) com o Dom (Incriado) que é o Espírito Santo”. Ou “Receba o Selo que é o Dom [ou “com o Dom/do Dom”] que é o Espírito Santo.”.

Quando não se traduz corretamente signaculum, não se significa o efeito criado da assinalação. Ou seja, o “signaculum” não se trata de um simples sinal que nos transmite o Espírito Santo nem se reduz a um “meio de transmissão” do Espírito Santo, mas um sinal que nos marca, que nos sela com o caráter do Espírito Santo que nos fora transmitido singularmente como Dom gratuito.

É precisamente este efeito interno que literalmente caracteriza o crismando que não é significado quando se traduz “signaculum” por mero “sinal”, corrompendo o próprio sentido da fórmula. Ora, excluído este efeito interno que é o caráter da Confirmação, seus efeitos não difeririam dos efeitos do Batismo, uma vez que desde a recepção do Batismo se recebe o Espírito Santo com todos os Seus sete dons. Mas então, que caracterizaria propriamente o Sacramento da Confirmação (e o crismando) que não caracterizaria especificamente ao Batismo (e obviamente, o batizando)? O aumento da Graça santificante? Mas este aumento também ocorre na recepção da Eucaristia. Seria a Confirmação um rito inútil ou supérfluo? O selo do Espírito Santo é o que difere o Sacramento da Crisma do Sacramento do Batismo, e inclusive difere do caráter batismal, embora sempre em radical dependência deste. 

Dizer o contrário é condenado como herético pelo Concílio de Trento. Ora, a especificidade (e de certa forma, sua singularidade) da Crisma na recepção do Espírito Santo está justamente na recepção do Seu caráter, na doação do Su selo indelével, Dom definitivo e irremissível, irrepetível, que nos sela para a Vida Eterna, nos dizeres de S. Leão Magno: «Signaculum vitae aeternae» (Sermo XXIV).

Este selo interno efetuado pela imposição de mãos simultânea com a unção crismal assinalada com o polegar acompanhadas das palavras da fórmula sacramental, confere-nos uma capacitação ontológica distinta do caráter batismal, ainda que, reiteramos, sempre dependente deste. O caráter crismal nos capacita para testemunhar com Fortaleza a Fé diante dos homens por palavras e obras, em uma vinculação mais estreita ao Corpo Místico de Cristo, em alusão ao que ocorreu em Pentecostes com os Apóstolos em que se recebeu o mesmo Espírito Santo em uma modalidade singular distinta da do Batismo, dando aos Apóstolos uma compreensão profunda do Mistério da Cruz, confirmando-lhes em Graça, para testemunhar publicamente a Fé no Cristo Morto e Ressuscitado, iniciando a missão pública da Igreja. Por isto a Confirmação é de certa maneira o início da atuação pública do cristão, uma vez que este é capacitado pelo caráter crismal para atuar publicamente, como cristão maduro.

Para cada crismando, a Confirmação é de uma certa maneira o seu “Pentecostes pessoal a modo sacramental”, com suas necessárias implicações cristológicas (maior configuração com Cristo e Sua Redenção); pneumatológica (o caráter do Espírito Santo e o robustecimento espiritual com o aumento da Graça e a plenitude dos Seus dons, força perfectiva para viver a Fé como cristão maduro, buscando a perfeição cristã com vigor em diversas circunstâncias da vida, sobretudo diante de adversidades mundanas que ameaçam a Fé e a moral); e eclesial (capacitação para atuar como membro provecto da Igreja, amadurecido, com o vigor e parresía necessários para o testemunho público da Fé, para o apostolado pessoal segundo o próprio estado, para a defesa das coisas sagradas contra seus inimigos externos, em ordem à salvação das almas e edificação da Santa Igreja). Por isso que costumava-se a denominar a Confirmação como “O Sacramento do apostolado leigo”, pois nele o leigo católico, sem votos específicos, e sem mudar seu estado de vida, recebe uma potencia espiritual para atuar enquanto tal, como fiel comum.

Todos estes aspectos, embora distintos, são inseparáveis. O Sacramento da Confirmação não é um Sacramento que está “em busca de uma teologia”, como afirmam hereticamente alguns. Há uma teologia própria e consolidada deste Sacramento, e que obviamente, admite seu justo e correto desenvolvimento, sempre homogêneo, no sentido de esquadrinhar e explicitar as mesmas sentenças infalíveis e certas tais como foram definidas pela Santa Madre Igreja.

Na Confirmação se é selado com o Dom Incriado que é o Espírito Santo na plenitude dos Seus dons criados, sendo este Espírito o mesmo Espírito de Cristo (procedente do Pai e do Filho, e enviado pelo Pai e pelo Filho no dia de Pentecostes), e a mesma Alma da Igreja, para caracterizar no crismando uma configuração mais plena ao Mistério de Cristo, capacitando-lhe para edificar a Santa Igreja pelo testemunho da Fé não somente pela recepção dos Sacramentos (como já lhe capacitava o Batismo), como também por palavras e obras diante dos homens, em ordem a glória de Deus (e jamais à própria vanglória). É, pois, sem a mínima sombra de dúvidas, o Sacramento que inaugura a atuação pública do cristão diante da Igreja e da sociedade, que é nos é dado à maneira de um selo espiritual. Fazemos questão de nos repetir e frisar este ponto, para que se compreenda bem os pontos seguintes.

Mais uma vez, esta observação sobre a especificidade da Confirmação como o selo do Espírito Santo enquanto caráter espiritual não se trata de uma “invenção de tradicionalistas” (termo imperfeito e provisório hoje utilizado para designar aqueles que são simplesmente católicos, fieis ao Magistério inerrante da Igreja), mas de algo amplamente reconhecido por especialistas no capítulo da teologia que abarca os Sacramentos (mesmo que sejam entusiastas da revolução litúrgica), em que neste ponto suas definições estão conformes à teologia católica, como se observa na obra de Dionisio Bobbio (insuspeito para nós), onde é enfatizado que na Confirmação se recebe o Espírito Santo à maneira de um “selo que caracteriza o batizado”:   

“Embora seja o mesmo Espírito do Batismo, na Confirmação Ele nos é dado de modo “singular” ou original, não somente por sua referência ao acontecimento de Pentecostes, mas também por ser dado a nós à maneira de um “selo” que “caracteriza” o batizado de modo irreversível (Confirmar Hoy, Dionísio Bobbio, p.92, tradução e negritos nossos)[9]

Aprofunda Bobbio em relação ao termo “Signaculum” em relação ao caráter da Confirmação:

Em segundo lugar, é preciso compreender o que significa o caráter, já que o dom do Espírito nos é dado como signaculum, ou signaculum spirituale, ou signaculum Domini.
O caráter da confirmação e sua irrepetibilidade são algo que pertencem à própria doutrina da Igreja.
A interpretação, no entanto, pode ser muito diversa. O Ordo nos oferece o contexto apropriado para uma correta compreensão, ao explicar o caráter como uma ‘singularidade’ com que nos é dado o Espírito. O caráter é um selo espiritual e indelével, um selo interior, um dom definitivo que não pode ser repetido. Ele se refere a Cristo na medida em que nos conforma à sua imagem, e se refere ao Espírito na medida em que nos confirma com um acento de definitividade na vida recebida de Cristo pelo batismo.” ». (Confirmar Hoy, Dionisio Bobbio. P.93, tradução e negritos nossos)[10]

O aumento da Graça que o Sacramento da Confirmação opera não é compreendido de modo meramente “coisificado” como nos acusam os modernistas como se fosse algo pejorativo, embora sem dúvida haja o “Res Tantum” próprio de cada Sacramento, pois a Graça é realmente algo criado por Deus, e os Sacramentos de vivos conferem de certo modo o enraizamento da Graça santificante na alma, isto é, a intensificação deste hábito entitativo, e no caso da Confirmação imprime um novo caráter definitivo que fortalece o caráter batismal, associando-nos mais intensamente com o Sacerdócio Hipostático de Jesus Cristo, ainda que essencialmente distinto do Sacramento da Ordem. No caso da tradução da crisma, não se expressa o efeito interior especial do Sacramento que é justamente o que há de principal e característico enquanto Sacramento, fazendo alusão apenas ao sinal da Cruz como meio de transmissão do Espírito Santo, sendo, portanto, incompleto, pois não faz alusão ao caráter sacramental específico da Confirmação: “Pelo que se refere a expressão “Signaculum” ter relação sobretudo ao efeito espiritual interno (dá-se nos enquanto selo ou sinal que nos marca), mas também ao signo externo que o acompanha (Cruz)”. [11]

O mesmo termo é expresso na explicação dada na Editio Typica do novo rito da Confirmação, que manifesta o caráter sacramental da Confirmação que é o selo/Signaculum impresso indelevelmente na alma do crismando: “«Ipsis autem character seu signaculum dominicum ita imprimitur, ut sacramentum confirmationis iterari nequeat», Ordo Confirmationis, n. 2. 

No entanto, as próprias conferências episcopais de todos os países lusófonos unificaram a fórmula (que é usada até hoje no rito novo), modificando-a uma vez mais, e inclusive reconhecendo a insuficiência do termo “sinal” por não expressar a riqueza de “Signaculum”, mas alegaram certa incapacidade para encontrar outro termo melhor. É o que se verifica claramente no próprio documento em que se propõe a alteração da fórmula, já traduzida erroneamente: “Reconhecemos que sinal não traduz toda a riqueza de Signaculum (no texto latino), mas não se encontrou melhor. ” (Boletim de Pastoral Litúrgica, Fórmulas Sacramentais em Língua Portuguesa, Secretariado Nacional de Liturgia, 1989, p.100, negritos nossos)

Chega a nos ser moralmente inevitável a consternada indagação: A palavra “Selo” está longe de ser um termo raro, obscuro, ou desconhecido pelo comum dos homens, e expressa exatamente o que diz a fórmula original, mais que qualquer outro termo…Como não se encontrou outro termo melhor?!

Ensina Santo Tomás que para as palavras que significam o sacramento, devem ser usadas aquelas que principal e comumente são usadas pelos homens para significar a realidade sacramental: 

 “Embora em cada língua ocorra que diversas palavras signifiquem o mesmo, contudo, sempre alguma delas é a que principal e comumente usam as pessoas dessa língua para significar aquilo. Tal palavra deve ser tomada na significação do sacramento. Assim como também entre as coisas sensíveis se toma para a significação do sacramento aquela cujo uso é mais comum ao ato pelo qual se significa o efeito do sacramento; como a água, que comumente usam as pessoas para a lavagem do corpo, pela qual se significa a lavagem espiritual, é tomada como matéria no batismo” (Suma Teológica, ,III, q.60, a.6, ad.2, negritos nossos)

Ora, é patente que “selo” é a tradução que corresponde perfeitamente à “Signaculum”, sendo uma palavra usada principal e comumente pelos homens e incluso presente na Sagrada Escritura para se referir justamente à marca indelével do Espírito Santo recebida no Sacramento da Confirmação e significado por Signaculum (em latim) ou Sphrágis (no grego), ao invés de “sinal” que em latim corresponde à “Signum”, e em grego corresponde à “sēmeîon (σημεῖον). Os termos latinos e gregos são especificamente distintos para expressar esta realidade do caráter sacramental como selo indelével, impresso definitivamente na potência intelectiva (no intelecto-prático propriamente) do crismando.

 Chega ser em algo espantoso como pode haver se esquecido (ou quiçá desconsiderado) o termo “selo”, sendo este um termo usado e conhecido pelo comum dos homens e que traduz perfeitamente a realidade da tônica ou do acento sacramental significada no texto latino e grego da fórmula bizantina de onde fora extraída para o rito novo da Confirmação.

Selo é a palavra principal e mais comum do idioma que se traduz “Signaculum”, não de um modo abstrato e isolado, mas segundo o uso objetivo comum e concreto. Tanto em português, como em castelhano. 

Ainda que se objete que neste caso o “sinal” se refere ao “signo configurativo” de Cristo que é o caráter sacramental (ou se referiria a um “sinal que marca”), e que, portanto, tal problema de tradução poderia ser sanado pelo contexto do rito em si (determinatio ex-adjunctis), ainda não sana o outro problema da ilegitimidade da modificação da fórmula. Não basta que a fórmula expresse com suficiência o significado sacramental (em si mesma ou ao menos pelo contexto imediato do rito), a fórmula precisa também ser legítima, incluso em sua tradução, e a tônica precisa ser significada adequadamente à fórmula original. 

A errônea tradução de “sphragís/signaculum” por “sinal” no rito da Crisma, seguidda da alteração realizada pelas conferências episcopais com a “confirmatio” da Santa Sé em moldes pós-conciliares, não possui autoridade magisterial verdadeira segundo os critérios tradicionais estabelecidos pelo próprio Magistério da Igreja. Há uma real deposição da verdadeira autoridade magisterial nas inovações conciliares.

Ainda que houvesse uma suposta intenção subjetiva boa, a tradução errônea objetivamente deturpa o próprio sentido da fórmula e a profundidade do seu significado, e principalmente, da feita que não exprime inequivocamente a tônica sacramental que fora em si mesma definida por verdadeira autoridade magisterial, carece de legitimidade, de modo que a significação unicamente pelo contexto não se aplica, pois mesmo que haja o contexto ao longo do rito que dê significação devida para a fórmula (o que não é claro) e até mesmo se a fórmula em si exprimisse o significado suficiente, esta mesma fórmula de tradução errônea não fora aprovada pela Igreja em verdadeiro exercício de magistério.

O que se observa uma vez mais é que a Santa Sé depôs o seu poder de aprovar as fórmulas (apenas confirmando-as) e descentralizou para as conferências episcopais que por sua vez estão submetidas aos sensus fidei do Povo de Deus, havendo uma inversão liberal-democrática no exercício da autoridade, tornando-o oblíquo, em que o “sentir comum do povo de Deus” se torna a pseudo-regra próxima da Fé, não configurando assim Magistério autêntico em seu objeto primário ou secundário. Em outras palavras: a recognitio não sana automaticamente o problema doutrinal e deposição da autoridade magisterial.

Como esta modificação da fórmula sacramental ocorreu baseado no “magistério conciliar” em que a autoridade papal é descentralizada democraticamente para as conferências episcopais (e estas por sua vez se submetem aos “sensus fidei originário” dos fiéis, mediado pelos teólogos), não se funda em ato infalível ou certo do objeto primário, logo, não possui autoridade enquanto atos do objeto secundário do Magistério (referente às leis litúrgicas, bem como canonizações, as inovações nas leis canônicas, excomunhões, discernimento de aparições e outros atos). 

E observemos que não se trata jamais de um juízo arbitrário de nossa parte. O significado da tônica sacramental está principalmente no termo “sphragís/signaculum/selo/marca e no termo “Dom”, ambos referentes ao Espírito Santo, pois os genitivos “de” estão em sentido de aposição, significando que se está sendo selado pelo Dom que é o Espírito Santo. E isto é inclusive o motivo da escolha desta fórmula sacramental pelo grupo de estudo liderado pelo modernista Anibale Bugnini, que encabeçou a revolução litúrgica. Ele mesmo o relata:

 “O grupo de estudo, portanto, realizou um exame cuidadoso dos textos das tradições Ocidental e Oriental. Eles buscavam um texto que expressasse, ao mesmo tempo, a ação externa de assinalar — isto é, de selar a iniciação — e o efeito do sacramento, que é a concessão do dom do Espírito Santo”. (“Anibale Bugnini, Reform of the Liturgy 1948-1975”, The Liturgical Press, 1990, p.625, tradução e negritos nossos)

Mesmo o problema de sua tradução fora já identificado e relatado mesmo por gente entusiasta da reforma litúrgica (portanto, insuspeita para alguém da Tradição), e inclusive renomada nos meios modernistas no que concerne o capítulo dos Sacramentos, sobretudo os “Sacramentos de iniciação cristã”, como é o caso do jesuíta padre Francisco Taborda (professor emérito da Faculdade Jesuíta), quando trata sobre a origem semântica do termo “Sphragís” (em grego) e “Signaculum” (termo latino) significado adequadamente como “selo”, “marca” ou “sinete” nos primeiros séculos do Cristianismo: 

“Usava-se uma matriz feita de pedra preciosa fixada na base de uma haste que servia para imprimir, sobre a cera, um determinado selo ou marca.

A sphragís era ainda o sinete com a qual os pastores marcavam, a ferro incandescente, suas ovelhas, distinguindo-as das de outros rebanhos.

O exército romano também tinha uma espécie de sphragís. Era comum, no ato da arregimentação, que os soldados-recrutas fossem tatuados (signaculum) na mão ou no antebraço, como sinal de pertença a determinado batalhão.

Paulo usa o termo sempre de modo metafórico. Em sentido amplo, fala da comunidade de Corinto como o selo do seu apostolado no Senhor (cf. 1Cor 9,2). Num outro sentido, em Ef 1,13-14, em sua saudação inicial à comunidade de Éfeso, Paulo descreve, no contexto de uma bênção, o caminho do cristão. A sphragís, entendida como selo do Espírito, está no núcleo desse itinerário. “Nele [em Cristo], ainda, ouvistes a palavra da verdade, o Evangelho que vos salva. Nele, ainda, crestes e fostes marcados com o sinete do Espírito prometido, o Espírito Santo, adiantamento da nossa herança até a libertação final em que dela tomaremos posse, para o louvor da sua glória”. Eis o itinerário: (a) ouvir a Palavra; (b) crer em Jesus Cristo; (c) ser selado com o Espírito da promessa. “O Espírito Santo é identificado claramente como a chancela com que o cristão é assinalado para o dia da redenção escatológica” (TABORDA, 2001, p.191).” (Sphrágis: assinalados pelo Senhor, p.4, negritos nossos)

E continua em outro artigo de sua autoria em que aborda justamente a fórmula do Sacramento do Crisma segundo a reforma litúrgica e sua tradução para o português:

Na reforma litúrgica determinada pelo Concílio Vaticano II, adotou-se na Igreja latina uma antiga e venerável fórmula da Igreja Oriental, testemunhada já no fim do séc. 4º Traduzida literalmente do grego, ela soa: “sinete do dom do Espírito Santo”. A palavra-chave da fórmula original é “sprhagís” que significa sinete, chancela, selo. Não se trata do selo de correio que nos é familiar, mas da marca com que se autenticavam os documentos antigamente. Sobre a cera ou o lacre ainda brandos imprimia-se com um anel ou carimbo em negativo a marca do signatário. Era algo solene, marcante, duradouro, que ninguém podia falsificar, porque não possuía o negativo. Pelo sacramento da crisma é impressa em nós a marca do Espírito.

A construção gramatical da fórmula consiste numa série de genitivos, que se traduz em português através da preposição “de”. Cada genitivo da frase explica o sentido da palavra anterior: o sinete é o dom que é o Espírito Santo. A fórmula expressa que o sinete que marca o cristão de forma indelével e sela sua aliança com Deus, é o próprio Espírito Santo, o dom de Deus por excelência. Ele próprio é o selo que garante nossa relação com Deus, agora e para a eternidade (cf. 2 Co 1,22; Ef 1,13s e 4,30). Nada mais profundo e consolador.

A tradução latina usada na liturgia romana acrescentou à concisão do grego um verbo: “N.N., recebe o sinete do dom do Espírito Santo”. A tradução literal ficaria muito deselegante e até incompreensível em português. Por isso, preferiu-se: “N.N., recebe, por este sinal, o Espírito Santo, o dom de Deus”. Uma tradução feita com boa intenção. Só que deturpou o sentido da fórmula e tirou toda a profundidade de seu conteúdo.

A tradução que estamos usando na celebração, confundiu o grego “sprhagís” e o latim “signaculum”, que significa “marca”, com a palavra latina “signum”, “sinal”, e transformou a fórmula numa alusão ao sinal da cruz que o bispo faz na testa do crismando ao ungí-lo. Não é. (…) O sinal que nos marca na crisma, não é meramente o sinal externo que o bispo faz sobre nós; é o próprio Espírito de Deus, o dom por excelência, o maior presente que Deus nos pode dar, dom do qual a assinalação pelo bispo é o símbolo. A fórmula é de um realismo sacramental muito forte, como gostavam de exprimir-se os Padres da Igreja. É como se o bispo dissesse: “Você está sendo marcado com o Espírito Santo, o Dom de Deus”.  (FRANCISCO TABORDA, S.J- Gestos que falam do Espírito, Revista Convergência)

Em outra obra, Taborda aborda novamente que a tradução de “Sphragís/Signaculum” por “sinal” debilita o sentido do termo (que lembremos: é a palavra-chave, a tônica sacramental), e da própria fórmula, deixando claro que não corresponde ao texto latino: “La «unción interior» es, en toda la tradición cristiana, el Espíritu Santo. Traducir sphragis por «señal» debilita el sentido de la palabra y, con ello, de la fórmula, además de no corresponderse con el texto latino”. (FRANCISCO TABORDA, S.J, En las Fuentes de la Vida Cristiana, Editorial Sal Terrae, 2013, p.165).

A tradução oficial deste trecho é esta: A “unção interior” é, em toda a tradição cristã, o Espírito Santo. Traduzir sphragis por “sinal” enfraquece o sentido da palavra e, com isso, da fórmula, além de não corresponder ao texto latino.” (Nas fontes da vida cristã”, Edições Loyola, 2001, p.180, negritos nossos).

Na nota de rodapé da mesma obra na edição brasileira original correspondente sobre o mesmíssimo trecho acima, Taborda insiste na diferença de significado dos dois termos: “”Signaculum” não é a mesma coisa que “signum”, como supõe a tradução brasileira”. (“Nas fontes da vida cristã”, Edições Loyola, 2001, p.180, negritos nossos)

O liturgista padre João da Silva Peixoto, que fora diretor do Secretariado de Liturgia da diocese do Porto, ao tratar da Celebração da Confirmação em língua portuguesa, também reconhece a debilidade da tradução “sinal”:

Para além do tema do «selo» ou marca do Espírito — o «signaculum» debilmente traduzido por «este sinal»— que já desenvolvemos a propósito da crismação feita com o sinal da cruz, a fórmula a pronunciar enquanto se realiza o gesto retoma o tema bíblico do Espírito Santo como «Dom de Deus». (J.S Peixoto, Celebração da Confirmação, Humanística e Teologia, 1991, p.45-46)

E na nota de rodapé da mesma página, complementa sua explicação comparando a tradução portuguesa unificada com as outras traduções, em que se verifica que todas traduziram “Signaculum” adequadamente, menos a tradução espanhola que, junto com a tradução portuguesa, também traduz erroneamente “Signaculum” por “sinal/señal”:

Bem mais felizes foram outras traduções: «N., sois marqué de l’Esprit Saint, le don de Dieu» (França); «N., sei besiegelt durch die Gabe Gottes, den Heiligen Geist» (Alemanha); «N., ricevi il sigillo dello Spirito Santo, che ti è dato in dono» (Itália); «N., ontvang het zegel van de hellige Geest, de gave Gods» = N., recebe o selo do Espírito Santo, o dom de Deus (Flandres). A tradução espanhola e a inglesa aproximam-se mais da nossa, mas grafam com maiúscula «Don» e «Gift»: «N. Be sealed with the Gift of the Holy Spirit»; «N., Recibe por esta señal el Don del Espíritu Santo», Note-se também que as traduções alemã, francesa e inglesa em vez de traduzir o «accipe» preferem uma expressão indirecta («sois marqué», «sei besiegelt», «be sealed»), aproximando-se mais do original bizantino em que é Deus e não o ministro quem dá o signaculum. (Id, ibid, p.45)

Ou seja, outras traduções mantiveram fielmente a correspondência comumente reconhecida em línguas vernáculas do significado real de “signaculum”:

  • Inglês: “Be sealed with the Gift of the Holy Spirit”


  • Francês: “Sois marqué de l’Esprit Saint, le don de Dieu”


  • Alemão: “Sei besiegelt durch die Gabe Gottes, den Heiligen Geist”


  • Italiano: “Ricevi il sigillo dello Spirito Santo che ti è dato in dono”


Todas essas traduções usam equivalentes de seal, sigillo, besiegeln, marqué — termos que preservam o significado teológico de signaculum como selo/marca/chancela/caráter espiritual indelével.


[1] JEAN-MICHEL GLEIZE: É NECESSÁRIO RECEBER O SACRAMENTO DA CONFIRMAÇÃO SOB CONDIÇÃO? Disponível em: https://catolicosribeiraopreto.com/e-necessario-receber-o-sacramento-da-confirmacao-sob-condicao/

[2] Bula Exsultate Deo sobre a união com os armênios, 22 de novembro de 1439, Decreto para os armênios; DS 1324: O quinto sacramento é a extrema-unção, cuja matéria é o óleo de oliveira, consagrado pelo bispo.

[3]Carta “Sub catholicae professione” ao bispo de Túsculo, legado da Sé Apostólica junto aos gregos, 6 mar. 1254 (negritos nossos).

[4] “11. Eis o que se pode dizer sobre a matéria. Mas e a forma? Encontramos no Novo Ritual a nova forma de um rito oriental. Essa inovação, embora incomum, não chega a invalidar o sacramento. Em contrapartida, as formas mais ou menos elaboradas pelos tradutores em língua vernácula podem ser inválidas. O critério de discernimento é sempre o mesmo: a forma deve significar suficientemente a graça especial causada pelo sacramento. Caso contrário, o risco de invalidade deve ser seriamente considerado.” – Disponível em: <https://catolicosribeiraopreto.com/e-necessario-receber-o-sacramento-da-confirmacao-sob-condicao/>

[5] Hoje já fazem mais de 50 anos. 60 anos se contar o término do Concílio, e há de se completar 56 anos desde a fabricação e publicação do Novus Ordo.

[6] A todo Magistério autêntico se deve dócil e reverente anuência, mesmo quando não infalível, devendo o católico assentir no exato mesmo grau com que a Igreja emite certo ensinamento. Deve assentir com certeza quando ela emite certeza, deve assentir com probabilidade quando ela emitir uma sentença provável, e deve cessar toda disputa entre teólogos quando a Igreja adota uma tese de um lado que antes era disputado. No Magistério não-infalível também há diversos graus de autoridade (desde uma alocução papal a certo grupo particular de pessoas até uma grande encíclica dirigida à toda a Igreja), os equívocos possíveis são raríssimos segundo o consenso dos teólogos, não podendo haver de erro ou falsidade completa, ou erro contra a Fé, mas de falhas, imprecisões, equívocos parciais, pois a verdade não admite graus, mas o erro e a falsidade os admitem. O Espírito Santo não assiste a algo que seja inteiramente falso ou gravemente errôneo. Ao menos na parte do ensinamento que é assistida em algum grau pelo Espírito Santo, é sempre certíssima e segura, não podendo haver ruptura ou erro substancial no Magistério autêntico da Igreja. Também no Magistério não-infalível se estende o ensinamento de Nosso Senhor que afirma “Quem vos ouve, a Mim ouve” – Lc X, 16.

[7] É o erro que comete Dom Rifan da Adm. Apostólica de Campos, entidade neomodernista oriunda da extinta União Sacerdotal São João Maria Vianney (esta sim, era católica), após trair o legado de seu formador, o grande Dom Antonio de Castro Mayer.

[8] A Candeia debaixo do Alqueire, Editora Castela, 2020, p.269 (negritos nossos)

[9] “Aunque es el mismo Espíritu que en el bautismo, en la confirmacion se nos da de un modo «singular» u original, no sólo por su referência al acontecimiento de Pentecostés, sino también porque se nos da a la manera de un «sello» que «caracteriza» al bautizado de modo irreversible” (Confirmar Hoy, Dionísio Bobbio, p.2, tradução e negritos nossos)

[10] Trecho original: “En segundo lugar, es preciso comprender lo que significa el carácter, puesto que el don del Espíritu se nos da a manera de «signaculum», o de «signaculum spirituale», o de «signaculum Domini. El caracter de la confirmación y su irreiterabilidad es algo que pertenece a la misma doctrina de la Iglesia.  La interpretació sin embargo, puede ser muy diversa. El Ordo nos ofrece el contexto propio para una recta comprensión, al explicar el carácter com a «singularidad» con que se nos da el Espíritu. El carácter es un sello espiritual e indeleble, un sello interior, un don definitivo que no se puede repetir. Dice referencia a Cristo en cuanto que nos configura a su imagen, y dice referencia al Espíritu en cuanto que nos confirma con un acento de definitividad en la vida recibida de Cristo por el bautismo.” (Confirmar Hoy, Dionisio Bobbio, p. 93)

[11] Por lo que se refiere a la expresión «signaculum» dice relación sobre todo al efecto espiritual interno (se nos da cual sello o señal que nos marca), pero también al signo externo que le acompaña (cruz).” – Confirmar Hoy, p.75. 

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