por Gabriel Klautau Mileo
1) Maria como “causa moral” da graça (intercessão; mérito; satisfação)
Segundo o Pe. Garrigou-Lagrange (A Mãe do Salvador e a Nossa Vida Interior, p. 235), é geralmente aceito entre os teólogos que Maria é medianeira de todas as graças num “sentido moral”: isto é, ela não apenas atua como intercessora em todas as causas de seus filhos, pedindo a Deus por todos nós, mas também, por sua imediata cooperação na obra da Redenção como a “Nova Eva”, mereceu todas as graças para nós no Calvário de congruo (segundo a terminologia de São Pio X na encíclica Ad Diem Illum). Nenhuma dessas qualidades se aplica aos demais santos, pois estes não intercedem por todas as nossas causas, nem as mereceram todas aos pés da Cruz.
Assim, conforme o Pe. Juniper B. Carol:
“Com relação à tese de que Maria é a Dispensadora de cada graça em particular, alguns teólogos a consideram uma doctrina catholica, isto é, uma doutrina ensinada em toda a Igreja, por exemplo, em encíclicas papais, mas que nem sempre é proposta infalivelmente. O maior número de teólogos, contudo, a classifica como fidei proxima, ou seja, uma verdade que, segundo o consenso quase unânime dos teólogos, está contida na palavra de Deus escrita ou oralmente transmitida.” (Juniper B. Carol, Mariology, vol. 2, p. 459).
E, mais recentemente, segundo a tradução portuguesa do Pe. Manfred Hauke, Introdução à Mariologia:
“A mediação universal de Maria já é parte segura do magistério ordinário.” (Manfred Hauke, Introdução à Mariologia, ed. Ecclesia, p. 291).
O significado moral da mediação universal de Maria não parece ter sido diretamente atacado pelo novo documento do Dicastério para a Doutrina da Fé (cf. parágrafos 38-42 do MPF). No sentido mais geral e comum, portanto, ela ainda pode ser chamada “Medianeira de Todas as Graças”. O documento evita declarar explicitamente que ela intercede em “todas” as nossas causas, mas tampouco o nega de modo explícito.
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2) Maria como causa “instrumental” secundária da graça (causalidade eficiente; como a dos Sacramentos)
O que Fernández realmente quis contestar foi a doutrina, cada vez mais comum, de que Maria não apenas intercedeu por todas as graças, mas também seria diretamente responsável por distribuí-las como uma “causa física-instrumental” secundária (como os Sacramentos). Em outras palavras, segundo a teologia católica tradicional, Maria não apenas obteria todas as graças para nós por suas súplicas e méritos (isto é, causalidade moral), mas também participaria diretamente — como os Sacramentos — na cadeia de distribuição da graça (isto é, causalidade eficiente; “física”; ou instrumental secundária).
No magistério ordinário, o Papa Leão XIII ensina, com base em São Bernardino de Sena:
“Toda graça que é comunicada a este mundo tem um curso tríplice. Pois, por ordem excelente, é dispensada de Deus a Cristo, de Cristo à Virgem, e da Virgem a nós.”
(Leão XIII, Encíclica Iucunda semper, 8 set. 1894; ASS 27 [1894], 179).
Note-se que aqui São Bernardino e Leão XIII não podem estar referindo-se apenas à intercessão de Maria, pois a ordem da intercessão é inversa: Maria suplica a Cristo, que suplica ao Pai por nossas causas. Neste texto, Leão XIII trata, na verdade, da distribuição instrumental da graça e do papel de Maria nela.
O Pe. Gabriel Roschini, um dos dois maiores mariologistas do século XX (junto com o Pe. Charles Balic), afirma que esse tipo de causalidade eficiente explicaria melhor certas expressões tradicionalmente usadas pelos Papas em referência à mediação universal da Virgem:
“A Bem-aventurada Virgem, de fato, é chamada de ‘Tesoureira’ de Cristo, e todas as graças nos vêm ‘pelas mãos’ de Maria. Ela é o ‘pescoço’ do corpo místico de Cristo, e portanto todas as influências da cabeça, antes de chegarem aos membros, passam por ela. Ela é o ‘aqueduto’ pelo qual vêm todas as águas da graça que brotam da fonte, Cristo. Todos esses modos de falar, mesmo tomados metaforicamente, não parecem ter pleno sentido se se desconsidera a teoria da causalidade física instrumental.”
(Pe. Gabriel Roschini, La Madre de Dios según la fe y la Teología, tomo I, p. 648).
A ideia de Maria como causa instrumental da graça foi especialmente popularizada pelas aparições da Medalha Milagrosa (1830), de Lourdes (1854), de Fátima (1917) e por várias outras aparições marianas contemporâneas, que a mostram distribuindo as graças de Deus das palmas abertas de suas mãos imaculadas. Essa doutrina também está contida no Tratado da Verdadeira Devoção, de São Luís Maria Grignion de Montfort, que afirma:
“O Filho de Deus… fez dela a tesoureira de tudo quanto Seu Pai lhe deu por herança. É por ela que Ele aplica Seus méritos aos seus membros e comunica Suas virtudes e distribui Suas graças” (TD 24);
“O Espírito Santo… escolheu-a para ser a dispensadora de tudo quanto Ele possui… [Ele] não concede dom celeste algum que não passe por suas mãos virginais” (TD 25).
Ela é “a única tesoureira de seus tesouros, a única dispensadora de Suas graças” (TD 44; SM 10, 21, etc.).
É necessário, porém, reconhecer honestamente que nem todos os teólogos do século passado concordaram em atribuir esse tipo de causalidade à mediação de Maria. Segundo o Pe. Roschini:
“Ela é admitida pelo Cardeal Lépicier, Cardeal Mercier, Pe. Hugon, Pe. Commor, Pe. Lavand, Pe. Lacrampe, Pe. Bernard, Pe. Clemens, Pe. Giesbert, Pe. Garrigou-Lagrange e outros. É negada por Suárez (que a considera algo inaudito), Merklbach, Pe. Heris, Pe. Grikler, Pe. Terrien, Pe. De la Taille (que a chama de ‘um mito’), Bittremieux e outros. O Pe. Friethoff acredita que talvez possa ser admitida em algum caso particular.”
(Pe. Gabriel Roschini, La Madre de Dios según la fe y la Teología, tomo I, p. 647).
Entretanto, com base na autoridade de Leão XIII, o magistério ordinário da Igreja já havia claramente favorecido o lado propenso a essa piedosa crença. O novo documento do Cardeal Tucho, porém, ataca diretamente essa doutrina, especialmente no parágrafo 65. Evidentemente, isso não constitui uma decisão irrevogável, assim como os decretos de 1616 e 1633 do Santo Ofício, que condenaram o heliocentrismo como “falso e contrário à Sagrada Escritura”, não o foram. Mas, sem dúvida, confunde os fiéis e torna necessária uma ulterior clarificação.
Para uma defesa mais completa da causalidade instrumental na mediação universal de Maria, veja:
Pe. Gabriel Roschini, De natura influxus B. M. Virginis in applicatione Redemptionis, em PAMI (ed.), Maria et Ecclesia, Cidade do Vaticano, 1959, vol. 11, pp. 223-295;
A. M. Apollonio, Maria Santissima Mediatrice di tutte le grazie. La natura dell’influsso della Beata Vergine nell’applicazione della Redenzione, em Immaculata Mediatrix, 2007, vol. 7, pp. 157-181; etc.




