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HISTÓRIA, REVISIONISMO E PATRIOTISMO

por João Medeiros

No último dia 7 de setembro, a nação brasileira comemorou os 200 anos da fundação de um país institucionalmente soberano de sua antiga metrópole. Às margens do Ipiranga, o então príncipe Dom Pedro de Alcântara, filho primogênito e herdeiro presumível de Dom João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves, declarava que o Brasil seria a partir daquele momento uma terra que caminharia com suas próprias pernas – sob conselho prévio de seu próprio pai, e também de sua esposa Dona Leopoldina e de seu conselheiro, o controverso e anticlerical maçom José Bonifácio de Andrada e Silva. Homem de certa argúcia, Dom Pedro certamente sabia que seu nome seria ecoado pelos salões da história, mas imagino que a possibilidade que hoje se concretiza não era uma delas.

         A partir dos anos 30 do último século, a historiografia brasileira entrou num processo aparentemente sem fim de revisão da história do país. Os marxistas, com seu materialismo histórico, modificaram o viés previamente positivista ou legalista vigente, acrescentando um novo prisma desde o hegelianismo marxista e certa adaptação do conceito da luta de classes ao método histórico, dentre outras coisas. Décadas mais tarde, sob a clava dos militares nos anos de chumbo, surgiria uma nova historiografia influenciada não só por tais marxistas como pela francesa Escola dos Annales, e que seguiria o mesmo caminho revisionista, porém, digamos, mais alinhados à centro-esquerda. Diante da ditadura Vargas, das brigas entre udenistas e petebistas nos vaivém pós-Guerra que culminariam na derrubada de João Goulart em 1964 e no AI-5 em 1968, o impacto completo de tais correntes só seria de fato sentido na academia brasileira após a abertura política promovida pelos linha-branda de Geisel e Figueiredo com a Lei da Anistia de 1979. Com o retorno dos exilados políticos ao Brasil, a historiografia brasileira passaria por uma verdadeira revolução: o positivismo legalista de uma “história institucional” seria pouco a pouco demolido academicamente e, como a natureza não deixa vácuo, o novo método historiográfico brasileiro se moldaria entre o materialismo histórico e a avant-garde dos Annales, bem como de certa filosofia estruturalista também francesa. Diante do fim de dois grandes períodos de dureza política doméstica e as mudanças geopolíticas trazidas ainda que tardiamente pela Guerra Fria (como o Maio de 1968 e a Revolução Sexual), a abertura política brasileira precisava de uma nova história e os revisionistas à esquerda lhes municionaram com o que precisavam.

         Exatos 30 anos depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, a sétima constituição brasileira – sexta republicana – dita “Constituição Cidadã”, foi eleito em 2018 o primeiro governo abertamente de direita no espectro político moderno. Jair Bolsonaro foi empossado presidente a 1 de janeiro de 2019 e suas políticas prometiam não só mudanças morais conservadoras diante das pautas progressistas e identitárias tão em voga na última década, mas também um novo cenário cultural para um Brasil desconstruído por governos esquerdistas. Profundamente inspirados e instigados pelo filósofo Olavo de Carvalho, os adeptos da nova direita brasileira seguiram com sua estratégia de “Guerra Cultural”, uma inversão à direita da política revolucionária de Gramsci (como se os fins maquiavelicamente justificassem seus meios).

Em novembro de 2019, o dramaturgo Roberto Alvim foi criado por decreto presidencial Secretário Especial da Cultura, cargo antes inexistente, mas com menos de três meses no cargo realizou um discurso adaptado do ideólogo nazista Joseph Goebbels e em ambientação semelhante à do alemão, até mesmo com a reprodução da romântica ópera Lohengrin de Richard Wagner; o que justamente lhe rendeu a demissão. Mas se por um lado Alvim foi demitido, por outro, suas palavras (ou as de Goebbels) já eram previamente ecoadas na nova direita pela criação de uma “arte heroica e nacional, dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e imperativa; ou então não será nada”. O primeiro passo para isso veio antes mesmo da eleição de Bolsonaro ao cargo máximo republicano, com a criação de think tanks inspirados na direita americana, como a IVIN Filmes, que produziu e lançou em 2018 o documentário “Bonifácio: o Fundador do Brasil”, quase que uma deificação da figura de Andrada, visto segundo a “teoria das camadas da personalidade” de Olavo de Carvalho, e de sua transformação em fundador do Brasil ao modo dos Founding Fathers dos Estados Unidos – uma espécie de George Washington sem um Monte Rushmore para chamar de seu.

Foi este cinema romântico e idealista de ares épicos, muitíssimo bem produzido e com “grande capacidade de envolvimento emocional”, que ditou o tom das produções da nova direita insurgente no Brasil, especialmente através da produtora Brasil Paralelo, criada em 2016 mas com um boom de popularidade desde 2019, pela série documental “A Última Cruzada”, através da divulgação massiva de Olavo e de quem o circulava e seguia – série que visava, segundo descrição de propaganda, “contar a história brasileira com o resgate dos heróis nacionais”. A Brasil Paralelo cresceu exponencialmente a ponto de se tornar a mais popular produtora think thank da nova direita: criou serviço de streaming, disponibilizou cursos, aulas e formações, e algumas das suas figuras de destaque foram brindadas com cargos pelo novo governo brasileiro, como o historiador Rafael Nogueira. Diante de uma historiografia revisionista esquerdista, surgiu a historiografia da nova direita conservadora; diante da historiografia revisionista da nova direita, começou a tomar forma uma nova historiografia dentro da nova direita, mas de viés reacionário e tradicionalista.

Se na nova história pós-redemocratização os marxistas desejavam um mundo sem heróis feito de um impessoal coletivo do povo, uma multidão abstrata e amorfa sem rosto, alma e coração; a nova direita conservadora deseja hoje um mundo de heróis ultrarromânticos, personagens históricas em seus melhores recortes e virtudes, quase que indefectíveis e inerrantes. Mas para além desta dicotomia e com o fim de refutá-la, há uma terceira via que vem grassando e seduzindo a muitos católicos nos últimos anos: uma corrente de história “tradicionalista”. Explico as aspas: seguindo-se uma busca bem-intencionada pela história brasileira que visa (e consegue) demonstrar que a história do Brasil não começou em 1822, mas muito antes com suas raízes ibero-portuguesas; historiadores católicos tradicionalistas, num afã de “combater a maçonaria” e mesmo meros opinantes de leitura restrita a dois ou três livros (ou, pior, a postagens de redes sociais), erguem-se como juízes do que é ou não fato histórico sem o menor resquício de evidências e documentos históricos que os ampare.

É importante ressaltar que concordamos com Gilberto Freyre, Pedro Calmon e Capistrano de Abreu, dentre outros nomes de peso, acerca da formação de um gene “brasileiro”, o que se deu pelo contato e integralização entre ameríndios, lusos e africanos, cada qual com sua contribuição em maior ou menor grau à germinação de Pindorama, Terra de Santa Cruz. Um novo povo nasceu e, com ele, uma nova cultura. Mas retomemos nossa prosa central com um pequeno exercício de metodologia histórica.

No exercício da ciência histórica, ainda que não seja possível adquirir uma certeza absoluta acerca dos fatos apurados, porém uma certeza moral; o historiador deve trabalhar fatos ou aparentes fatos com amparo em documentações e fontes históricas de ângulos diversificados. Suas especulações nunca devem se dar acerca do que não ocorreu historicamente, mas fundamentadas em fatos históricos, e o mesmo serve a quaisquer juízos que porventura faça. Suas especulações dão-se diante do que possui em mãos ou objetiva possuir: “o que se deu? Como se deu? Por que se deu? O que motivou os partícipes daquele fato?”. Tais são as questões a serem feitas, dentre outras, sempre amparadas pelo fato histórico e nunca fora dele. A historiografia trabalha com o fato e, desde que com evidências suficientes para isso, com as possibilidades dentro dele. Diante disso, podemos todos concluir que o historiador não é intérprete de um futuro que nunca ocorreu: aqueles que trabalham com “e se…” são astrólogos, tarólogos, numerólogos, cartomantes e outros ramos pseudo-empregatícios.

Erro comum em todos os grupos citados, mas especialmente nas novas historiografias direitista e católico-tradicionalista, é o de se fazer elucubrações de um futuro que nunca ocorreu com uma certeza categórica e absoluta nunca antes vista. “Se Dom Pedro tivesse deposto as armas em 1824 e perdesse direito ao trono português por lesa-majestade, mantendo assim a união do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e se Dom Miguel fosse o monarca, a maçonaria seria proibida e debelada, e seus membros presos transatlanticamente; e não haveria Regência, guerras separatistas ou golpe republicano no Brasil; ou as Guerras Liberais, o Ultimato de 1890, o Regicídio e o golpe republicano em Portugal”, afirma o nosso interlocutor, acrescendo que “o brasileiro não deve comemorar o 7 de Setembro, mas a Deus pedir perdão por ele”, porque Dom Miguel era católico e virtuosíssimo enquanto Dom Pedro era maçom, liberal e luxurioso, e que “a Independência do Brasil foi uma vitória da maçonaria contra a Igreja Católica”. Ou mesmo, ainda mais absurdo, que “se não houvesse Independência, o liberalismo, o socialismo e a esquerda não teriam entrado no Brasil”. Refutando história com história, as virtudes pessoais de um homem, mesmo de um santo, não são garantia alguma de um futuro de grandes glórias à uma nação: São Luís IX, rei santo da França canonizado pelo Papa Bonifácio VIII, foi um modelo de homem, rei e governante, verdadeiro nobre e cavalheiro; mas nenhuma de suas virtudes impediu seu neto Felipe IV, o Belo, de prender o mesmo Bonifácio VIII e mandar que o espancassem, ou de ser o principal responsável pelo Cisma do Ocidente com o cárcere papal em Avinhão. E o mesmo seja dito aos monarquistas brasileiros, sonhadores de um reinado da princesa Dona Isabel que nunca existiu.

Marco Túlio Cícero, o célebre orador romano, escreveu em seu diálogo De Oratore que “a história é mestra da vida”, pois é “testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memória”, e acrescentou que o historiador nunca deve “dizer mentiras ou ocultar verdades”. E a verdade é que naquele momento, a situação política e moral em Portugal conseguiu o difícil feito de ser igual ou pior que a brasileira. Com sua panfletagem miguelista, o tradicionalista revisionista fortuita e esquizofrenicamente esquece-se de que as chamas do iluminismo já consumiam Portugal desde meados do século XVII, com os 30 anos do infame Marquês do Pombal, destruidor da Companhia de Jesus no Brasil; dos impactos da invasão napoleônica à Lusitânia que forçou a Corte Real ao Brasil, da Revolução do Porto, dentre outros eventos. Àquela altura, Portugal estava ainda mais infestada de maçons que o Brasil, e de uma ala mais progressista que superava a brasileira, devido a influência próxima da França e ao rancor guardado dos anos da Corte Real no Brasil – que deram à antiga colônia, alçada a reino, uma maior autonomia, instituições e faculdades, e fizeram do Rio de Janeiro a capital funcional do Império Ultramarino.

É mais fácil citar as virtudes de Dom Miguel e dos vícios e defeitos de seu irmão Pedro, cai melhor no panfleto, e assim reduzir a complexidade de personagens históricas profundas em duas ou três linhas, tomando numa só página um controverso homem que, compositor de formação esmerada, compôs a bela e classicista peça “Missa de Nossa Senhora do Carmo”, muito mais famosa pelo chamado “Credo do Imperador”; escreveu a liberal Constituição Imperial de 1824, mas tinha ares de um autocrata despótico; tornou-se maçom sob o codinome de Pedro Guatimozin, em honra do último imperador asteca – e de Aprendiz foi elevado ao grau 33 e eleito Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil pouco mais de um mês depois –, mas que proibiria o funcionamento da maçonaria e de qualquer outra sociedade secreta no Brasil com prisão e morte ou exílio pela Lei de 20 de Outubro de 1823.

Não se faz história com reducionismos e panfletos. Esses historiadores ou pretensos, com suas hipóteses megalômanas, antes desonram, desgraçam, corrompem e degeneram a ciência histórica, que não à toa é uma ciência e deve ser tratada com toda a seriedade que isto impõe. Não é lícita ao historiador a presunção de um futuro cheio de certezas morais ou absolutas: a ciência histórica trata do rastro impresso pelo homem no passado, e não de um futuro hipotético.

O objeto secundário deste artigo é o patriotismo. Diferentemente do que se pensa, a virtude patriótica não é um mero sentimento de amor à terra onde se nasce e vive fruto de algum cultivo cívico. A virtude patriótica é uma virtude categoricamente católica, subordinada ao Quarto Mandamento do Decálogo: o católico peca em não amar sua pátria ou em desrespeitá-la. Todavia, o primeiro ato tomado por tais tradicionalistas que revisam a história ao seu bel-prazer é desrespeitar seu país, ao torcer, distorcer, ocultar e esquecer fatos históricos. A exemplo: apesar de ruim como era, a Constituição de 1824 preambulava invocando a Santíssima Trindade, que é Deus, e que a Religião Católica era a religião oficial do novo Império, com mera tolerância das falsas religiões.

Ainda sob Dom João VI, Portugal reconheceu a independência brasileira em 1825 através do Tratado de Paz e Aliança, e a Santa Sé não só reconheceu a sobredita como retirou as dioceses brasileiras do jugo do Patriarcado de Lisboa pelo Breve Apostólico Quam intima paterni animi, de 15 de abril de 1826, bem como o Papa Leão XII outorgou os direitos de padroado possuído pelos reis de Portugal aos imperadores do Brasil pela Bula Praeclara Portucalia, de 15 de maio de 1827[1], e concedeu padroeiros próprios a nova nação (a saber, São Pedro de Alcântara, santo onomástico do imperador).

É dever do católico amar sua pátria sob pena de pecado (mortal, a depender das circunstâncias). É dever do católico respeitar sua pátria. É dever do católico defender sua pátria. Contrariamente a essa nova, pretensa e utópica historiografia revisionista de tradicionalistas que vem surgindo, onde para combater males de revisionismos esquerdistas ou direitistas caem noutros tantos, negam a própria história e criam contos de fadas que sequer Walt Disney sonharia criar – e que se deixada a si, pediria mesmo pelo retorno da União Ibérica –, aqui digo, com Gustavo Corção, que “não me aquece o sangue a ideia de ter sido Pedro I pressionado pelos que daqueles iluminismos se inspiravam; antes o aquece a ideia de descendermos de Nuno Álvares Pereira”, e que “no caso do Brasil parece-me transluminosamente clara a glória de sua independência, e a mim me parece mais clara essa evidência por duas razões principais, uma que está na origem histórica, cujos 150 anos agora festejamos, e outra que está no desenrolar da nossa história, e principalmente na atualíssima proclamação que vale por uma confirmação profunda de nossa verdadeira independência”[2], e uno-me a Dom Antônio de Castro Mayer, que badalava os sinos e campanários em sua Igreja Diocesana às 17h00 de cada 7 de Setembro, para comemorar com exatidão o Grito do Ipiranga. Por acaso tais senhores conseguirão ser mais tradicionalistas que o Leão de Campos e Gustavo Corção?

A Independência do Brasil é um fato histórico, queiram ou não, gostem ou detestem, não importa ao fato em si. E, fato que é, não pode ser negado ou adulterado sem gravíssimos danos à ciência histórica, à verdade e ao próprio país. A adulteração deste fato amputa a história, torna-a no mesmo pós-modernismo estruturalista adotado pela esquerda identitária moderna, na meta-história de Hayden White, em ficção histórica, ou seja, em literatura e discurso narrativo.

O Reino de Portugal não tinha mais a Senhora da Imaculada Conceição como sua Rainha, como a coroou Dom João IV, mas o liberalismo e sua monarquia liberal, tanto segundo as cortes quanto segundo a péssima Constituição Portuguesa de 1822 (inspirada parcialmente na Constituição de Cádiz e na Constituição Francesa de 1791). E o novo Império do Brasil também estruturava para si uma monarquia liberal. Para além disso, a Cristandade já havia sido infelizmente findada há séculos e Portugal não a continuava de forma alguma, a não ser por um ou outro resquício.

Social e historicamente, a razão de se comemorar o 7 de Setembro como data histórica não é só de uma mera separação geográfica entre Brasil e Portugal, mas como cristalização de um gene brasileiro em um povo em sua unidade e em sua cultura continentais, e neste novo povo ter raízes católicas herdadas dos lusos, que deram a ameríndios e africanos Fé (Católica, a única verdadeira), Lei (Decálogo) e Rei, Jesus Cristo, o Crucificado; como florescimento do germe plantado do contato entre Pedro Álvares Cabral e os índios em Porto Seguro.

E nesta soberania por Deus permitida, devemos não pedir a Ele o perdão por ela, mas pedir a São Pedro de Alcântara, Padroeiro do Brasil, que por nós interceda para que tenhamos uma verdadeira independência, Monarquia e Realeza, isto é, uma sociedade, povo e estado aos pés do Trono de Cristo, por sua Santa Romana Igreja. A única independência verdadeira das nações é o livramento do humanismo prometeico e liberal, e sua pertença à Igreja, que, como dizia Leão XIII, é o império de Cristo na terra.

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil, rogai a Deus por nós, filhos teus!


[1] Padre Cândido Santini, S. J., O Padroado no Brasil. Direito RealPerspectiva Teológica[S. L.], v. 6, n. 11, p. 159, 1974.

[2] Gustavo Corção. A Independência do Brasil. O Globo, 07/09/1972.

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