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“Eles Estão no Meio de Nós” (2022)

Por Marcio Moreira

O documentário é um gênero cinematográfico não-ficcional que se propõe a reportar certos fatos mediante uma abordagem artística. Explorando um assunto geral ou um traço da realidade de forma mais básica e direta que os gêneros ficcionais, o doc seleciona, organiza e reproduz comentários, pesquisas, entrevistas, etc. que fornecem uma visão não meramente descritiva, mas sim criativa sobre o objeto analisado. Não se trata, portanto, de simples reportagem, mas de reportagem com valor estético. O maior desafio de um doc é preparar sua estrutura — roteiro, edição, montagem, efeitos, música, entre outros —, ou seja, dispor os elementos audiovisuais no arranjo documental de tal maneira que sua exibição seja a mais cativante possível, e que o tema desperte um contínuo interesse do espectador, mesmo nos trechos sem conflitos dramáticos ou grandes revelações.

As duas horas e vinte minutos de “Eles Estão no Meio de Nós” (2022), violentando os elementos essenciais da narrativa documental, obrigam o espectador a um teste de paciência verdadeiramente heroico. Tão aquém do esperado é o resultado final que mal podemos denominá-lo “filme-documentário”, pois está mais para uma amadora tentativa de primeira viagem no campo audiovisual que um serviço feito por supostos profissionais da área. Dito isso, num primeiro momento, demos nosso voto de confiança aos produtores Bernardo Küster e Viviane Princival e assistimos ao “documentário” do começo ao fim.

Logo de cara nos saltou os olhos a quase onipresença de Küster durante o filme. O pretenso documentarista católico, tão acostumado com a edição de vídeos no YouTube, destina um tempo excessivo para mostrar-se instalado em sua poltrona, falando, falando, falando, e a câmera registrando toda aquela tagarelice. É como se Küster não fosse o narrador, mas sim a grande estrela do documentário, o convidado mais célebre. Às vezes, a produção nos lembra um vídeo do canal de Küster com uma edição mais caprichada ou talvez uma grande live em formato de filme. Todo o dinheiro arrecadado por Küster e Princival — centenas de milhares de reais — não viabilizou um trabalho original, arrojado? Com um montante desse, um mero youtuber como o Felipe Castanhari, por exemplo, dono do canal Nostalgia, por mais mainstream que seja, possivelmente prepararia algo mais claro e expressivo, e sem demorar longos quatro anos.

Além da participação insistente de Küster, que entedia o espectador, outros pontos problemáticos merecem destaque. A produção não tem uma apresentação prévia do drama em questão, parecendo, no final das contas, mera pregação para convertidos. Há também o fato de que as poucas imagens de apoio têm um design artístico genérico, não raro parecendo cópia das produções tão ruins como do Brasil Paralelo. Por que isso? Faltou dinheiro? Ademais, os produtores sequer se ocuparam em instruir o espectador acerca dos “vilões” que estão no meio de nós. Talvez tenha faltado assistir a um dos docs do liberal-conservador Dinesh D’Souza, que, mesmo sendo terríveis, sabe como ritmar a narrativa, gerar conflito.

Outro grave problema é a linha do tempo, a cronologia confusa, os capítulos que são, na verdade, uma colcha de retalhos de filmagens reaproveitadas. Essa ausência de unidade é, possivelmente, a marca maior do trabalho. O doc é uma verdadeira salada de imagens sem harmonia de fotografia. Trechos com exposições (uso da luz) diferentes entre si. Há pouquíssimos trechos bem editados. O editor utilizou até da “cropagem” de alguns (“cropar” nada mais é que utilizar determinada área demarcada do material filmado, apagando o que ficou de fora, dando uma nova dinâmica à cena). Isso tudo com o peso de sacrificar a qualidade da imagem finalizada. É um subterfúgio utilizado para compensar a falta de enquadramentos, de vários ângulos de filmagem.

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Curiosamente, em outra famosa produção de baixa qualidade advinda de financiamento coletivo, “O Jardim das Aflições” (2017), o diretor se vê obrigado a ostentar o dinheiro que arrecadou, lançando imagens captadas por drone sem a menor conexão visual com o restante do filme. Se neste documentário o problema foi o abuso da estilização, no caso de “Eles Estão de Meio de Nós” o problema é a completa miséria do estilo.

Se há algum aspecto minimamente defensável no doc de Küster e Princival é a trilha musical até bastante agradável, lembrando rasteiramente as músicas épicas de Howard Shore na trilogia de “O Senhor dos Anéis” (2001-2003). Mas é repetitiva, monótona, e tenta forçar emoção em momentos de pura sonolência.

Constrangedor é o momento em que Küster nos apresenta alguns livros, dentre os quais não há nenhuma novidade, todos tendo edição disponível em português, e Küster ainda lê passagens de alguns desses livros durante o documentário. Há também uma fotografia sombria. Ouvimos o falatório acerca de um assunto pesado, mas nada vai além disso. Os entrevistados não têm tempo para desenvolver uma ideia significativa, que capte a atenção, esclareça suficientemente a inteligência a ponto de gerar uma identificação afetiva apropriada em quem assiste, pois o documentário é uma picotagem de edições malfeitas.

Não há um mísero relato de um padre perseguido ou de alguém que tenha sido pessoal e diretamente prejudicado por iniciativas dos padres da TL, ainda que este seja um tema farto de histórias que despertam um justo horror ao erro abordado. Até na documentação dos lugares importantes para o tema, Küster só conseguiu filmar pelo lado de fora dos portões. Mais uma vez: é constrangedor. 

Se, cinematograficamente, a produção é de qualidade duvidosa, quase nada se salva do seu conteúdo doutrinal. Küster e Princival almejam criticar a Teologia da Libertação (TL) propondo uma alternativa que, na verdade, põe a fé a serviço do direitismo, espécie de TL de sinal trocado. Os produtores enchem o doc com participações de figuras heterodoxas e de formação duvidosa, como Silvio Grimaldo e Tiba Camargos. Na tentativa de conciliar olavismo com catolicismo, o resultado é uma aberração doutrinária, um insustentável modernismo conservador, muito bem exposto por Fernando Schlithler em seu vídeo “Bernardo Küster e o modernismo de Olavo de Carvalho” (link para assistir). Pelo visto, Küster não aprendeu nada, e continua fazendo uma Teologia da Libertação de sinal trocado, querendo substituir uma heresia por outra.

Küster, tão indignado com a ala à esquerda dos erros modernistas, apoia sem juízo crítico a ala à direita dos mesmíssimos erros. Para Küster e seus entrevistados, o mal do Concílio Vaticano II (CVII) consiste na ausência de documentos condenando o comunismo. E só. A narrativa é a de que houve dois concílios: o verdadeiro e o propagado pela mídia, com o concílio “midiático” vindo a ser triunfante.

Nós do Ávila temos uma razão especial para rechaçar tal documentário medíocre e ideológico. Há quatro anos ajudamos a promover o projeto dos diretores, já que a Viviane Princival nos pediu para sediar um evento em nossa cidade para divulgar o filme que estava bem no início da captação do financiamento coletivo.

Aceitamos de bom grado organizar e sediar o evento para divulgação, dando nosso voto de confiança, pois já tendo Viviane participado da ótima produção do documentário sobre as Artes do Belo do professor Nougué, pensamos que ela iria dar algum critério reto ao documentário de Küster, o que nem de longe ocorreu.

Não demorou muito para percebermos que Viviane partilha das mesmas ideias tortas e heterodoxas da olavosfera, sendo, ao que parece, tragada por este meio, o que muito nos entristece, De todo modo, é necessário ressaltar que foram eles que se ofereceram para vir, não havendo convite algum de nossa parte.

Não sabíamos que os organizadores deste crowdfunding seriam tão irresponsáveis com o dinheiro alheio, não dando a menor satisfação aos colaboradores. Desde o ano passado apagaram o site, que era a única tentativa de prestação de contas e sempre se esquivavam da pergunta: quando vão lançar o filme?

Durante os últimos tempos, a desculpa perfeita era: estamos numa pandemi4. Depois disso, abandonaram todo bom-senso, juntaram-se com o Tiba Camargos. O resultado é essa sequência de vídeos apresentada, cuja qualidade está muito abaixo do que foi prometida. Infelizmente, essa “produção” se resume a uma VSL bem estilizada. Este é um termo próprio do marketing digital: Vídeo Sales Letter (VSL) ou “carta de vendas em vídeo” em tradução literal. Trata-se de um vídeo destinado a vender um serviço ou um produto. Dito de modo direito: Küster e Princival utilizaram-se do crowdfunding para divulgar cursos online. Podendo gerar enganos em incautos. 

Diante de um documentário heterodoxo, ideológico, tecnicamente medíocre, temos o dever de rechaçar tal feito, e abjurar qualquer tipo de colaboração (ainda que pontual) que tenhamos feito anos atrás. Por fim, é preciso destacar dois pontos:

1. A consequência nefasta desse projeto é frustrar a possibilidade de iniciativas honestas de financiamento coletivo para uma grande produção audiovisual no público católico brasileiro. Isto é, quem quiser produzir um filme-documentário mediante fundo coletivo será visto como picareta.

2. As pessoas que deram dinheiro do seu próprio bolso visavam colaborar com um filme documental, e não assinaram nenhuma parceria para produção de um vídeo de vendas. Que atitude mais traiçoeira de Küster e cia, favorecendo-se de um financiamento coletivo, sem anuência dos que deram a contribuição! Uma vez que certamente os envolvidos nesta produção estão lucrando com a venda de assinatura do produto digital, a pergunta de um milhão de reais é: os colaboradores do financiamento coletivo não poderiam reivindicar uma participação nos lucros destes planos de assinatura promovidos através do documentário?

Eles Estão no Meio de Nós

ELES ESTAO NO MEIO

Ademais, gostaríamos mesmo que esta produção terminasse de forma diferente. Como católicos devemos esperar de uma produção desta natureza o mínimo de qualidade técnica e sobretudo de ortodoxia, que não há – sobretudo quando se homenageia heterodoxos como Olavo de Carvalho. Desejamos, enfim, que brotem verdadeiros católicos que anseiam por belas produções para nossa posteridade e que saibam contribuir para uma reflexão verdadeiramente católica acerca das problemáticas de nossa geração. 

3 respostas em ““Eles Estão no Meio de Nós” (2022)”

Não assisti por inteiro, mas desde o início notei que tentou e muito copiar o modelo como o Centro Don Bosco apresentou a 3 anos (Maçonaria Inimiga da Igreja), mas não conseguiu nem de perto.

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