por Pedro Guilhon
Filme Anjos do Pecado (1943) – 80 Anos de um Clássico
Originalmente chamado de Les Anges du Péché (Os Anjos do Pecado [1] em tradução mais literal), este é um dos primeiros filmes do famoso diretor Robert Bresson. Nossa análise sobre tal filme trará quatro partes: falaremos sobre a história e os personagens, os traços da “cinematografia” de Bresson já em gérmen, os símbolos cristãos presentes no curso da história de forma crítica e algumas possíveis reflexões morais a partir da história e dos personagens da obra, e, no final, a nossa avaliação sobre a película.
A história se passa no contexto de um convento feminino de dominicanas que costumavam recrutar mulheres libertadas da prisão e introduzi-las e mantê-las na vida religiosa. Bem, a obra começa com a entrada de duas noviças: a Irmã Agnès, que acaba de ser convocada da prisão em uma situação ameaçadora, e a Irmã Anne-Marie, que vem, por outro lado, de uma família rica por causa do encantamento pela vida das dominicanas e pela vocação de “salvadora de pobres almas”.
Em seguida vemos que Anne-Marie demonstra a Agnès, perdoando o roubo de um espelho pela última, que no sonho de Anne há o ponto de orgulho que será o desastre para esta jovem. No diálogo entre elas, Agnès revela para Anne-Marie a existência de uma prisioneira incorrigível chamada Thérèse, por quem Anne-Marie dará todas as suas forças para salvá-la e torná-la ingressante na comunidade. Ao fim dos esforços que foram fracassados, de repente Thérèse aparecerá um dia para se reunir com as irmãs, mas apenas para escapar da responsabilidade por um assassinato…
Apesar de tudo isto, Anne-Marie pensa com ingenuidade e irracionalidade, mesmo que em nossa opinião não estivesse totalmente errada, que a palavra de Thérèse é idêntica à de Deus, o que é explorado por Thérèse precisamente para aumentar a insolência da Irmã Anne-Marie e causar conflitos entre a jovem, suas irmãs e suas superioras de tal forma que Anne será expulsa da família dominicana e entrará em crise existencial, no entanto Anne enfim às portas da vida eterna, a partir de suas pobres tentativas de continuar a amar a assassina, parece convertê-la à Fé e certamente fá-la se entregar para a polícia.
A respeito da parte técnica, é fascinante ver que, em Anjos do Pecado, algo está nascendo, o cinema de Bresson às vezes toma sua autonomia e parece abstrair-se das formas comuns de pensar sobre esta arte, a fim de tomar um estilo próprio. O filme em questão carrega o gérmen de alguns aspectos que tornarão possível a radicalidade e singularidade deste cineasta naquele estilo que ele chamou de “cinematografia”[2] em contraposição ao cinema “banal”, a exemplo daquele de Hollywood.
Dentre estes aspectos, podemos olhar para três principais: a exigência de que os atores respeitem um ritmo de movimentos precisos, o despojamento de influências excessivas do teatro, como a improvisação e o protagonismo dos atores, e o despojamento de coisas inúteis para a narrativa e para as cenas rítmicas do filme.
É engraçado imaginar o que os atores devem ter pensado durante as filmagens, engraçado imaginar como isto deve ter perturbado seus hábitos. Por vezes interpretando de forma “tradicional”, estes atores profissionais, pequenos “artesãos” seguros de seu know-how, devem ter sido, para sua grande surpresa, durante o espaço de alguns planos, algumas sequências, reduzidos a realizar gestos respeitando um ritmo impiedosamente preciso.
O ator que desejasse brilhar e afirmar-se aos olhos do mundo não se torna nas mãos de Robert Bresson que um simples, para usar a palavra bressoniana, “modelo”: um envelope humano “vazio” ao qual nada é pedido além de emprestar sua voz e seu corpo. O resultado? Nesta película uma sinfonia gestual, um balé de corpos cuja fluidez cria a impressão única de leveza, fragilidade e doçura, e que têm ainda mais razão de ser neste filme uma vez que a ação se passa num convento, ou seja, num lugar governado por uma regra precisa que assim exige comportamentos e gestos de um rito preciso: movimentos, marchas, orações, saudações, tudo isto é codificado e regulado.
O próprio cenário, a arquitetura do convento, parecem feitos para agradar a Bresson, por sinal. O despojamento extremo, a pedra, as superfícies lisas e planas, não atrapalham a imagem com sinais visuais parasitários e, em seguida, permitem que os gestos sejam inscritos em um fundo neutro graças ao qual demonstram todo o seu valor e iluminam com toda a sua beleza, não esquecendo ainda de mencionar o preto e branco da roupa das irmãs e os magníficos contrastes que isto às vezes cria na imagem.
Agora, no que diz respeito ao simbolismo da obra, devemos notar, com o objetivo de elevar a compreensão e o prazer estético do público, as seguintes imagens cristãs: o beijo; Irmã Anne-Marie; e Irmã Thérèse.
O beijo que em um momento Thérèse dá a uma desmaiada Anne-Marie, depois de trair a confiança de Anne-Marie e fazê-la deixar as dominicanas, evoca a entrega de Cristo por Judas com um gesto dissimulado de amizade, e em outro momento quando a assassina arrependida dá um beijo aos pés de uma Anne-Marie morta, isto parece-nos a representação de Santa Maria Madalena aos pés de Jesus Cristo crucificado.
O uso da jovem Anne-Marie como uma representação de Nosso Senhor, uso antecipado acima, também é mostrado no início da obra enquanto uma mulher rica que desce de sua vida luxuosa para viver entre os miseráveis e ajudá-los, como Nosso Senhor desceu do Céu para viver entre nós e ajudar-nos a subir ao Céu; depois como o “cordeiro” que sempre entra em segredo, após sua expulsão, no jardim das freiras, como suspeitava e dizia Madre-Superiora Dominique; e no final como o “cordeiro imolado” pela salvação dos pecadores, pela assassina Thérèse.
Falando de Irmã Thérèse, é óbvio que ela representa o diabo quando ela aumenta o orgulho de Anne e a faz imaginar que uma das superioras, Madre Saint-Jean, e as outras irmãs são invejosas para com a jovem e suas qualidades, porque o diabo; “diabo” vem do grego diabolo, on, que significa “aquele que faz a divisão”; tentou os primeiros pais especialmente ao orgulho e à inimizade, à divisão, contra o Superior, Deus: Mas Deus sabe que no dia em que você comer dele [do fruto da árvore do conhecimento], seus olhos serão abertos, e vocês serão como deuses, conhecendo o bem e o mal (Gn III, 5).
O problema com o símbolo de Anne-Marie como Nosso Salvador é o de que ela não é humilde do início até próximo do fim da narrativa e demonstra um amor desordenado não só por sua pessoa e suas opiniões, mas também pela assassina Thérèse, e de tal forma que a jovem disse com tristeza que se soubesse antes da verdade que poderia ajudá-la a se esconder! Além disto, a imagem de Thérèse como Madalena é francamente um tanto dificultada porque não temos certeza de sua verdadeira conversão, apesar do arrependimento por seus erros ser claro. Todas estas considerações, assim, nos levam a questionar o nome da obra: por que Anjos do Pecado?
A justificativa é a de que ninguém é santo no convento, apesar de possuir os três votos religiosos (castidade, pobreza e humildade) ou pretender fazê-los. Todas as irmãs, e não apenas as três mais citadas, têm faltas mais ou menos graves: Madre-Superiora Dominique tem preferências e frouxidão indevidas em relação à Anne-Marie e que também fomentaram suas atitudes arrogantes, a posse de um gato pela Superiora Irmã Saint-Jean é contra o voto de pobreza e causa certo desgosto à vida comunitária, uma irmã mente para se fazer passar por criminosa, outras irmãs (entre elas também Irmã Agnès) falam mal, pelas costas, de Anne-Marie e Thérèse, etc.
No entanto, podemos observar também as qualidades das dominicanas tais quais, dentre outras, a coragem e o desprendimento que se desenvolvem em Anne-Marie em relação à mãe e ao mundo no convento, a generosidade da jovem no primeiro gesto de amor por Thérèse, sua diligência em seguir a Palavra de Deus e sua humildade em reconhecer sua arrogância depois de adoecer. Podemos observar a boa docilidade e a paciência demonstradas algumas vezes por Mère-Dominique com suas filhas durante o filme, e por Madre Saint-Jean mesmo com Anne-Marie no início da obra, bem como o amor que é depositado na jovem moribunda por todas as irmãs (Thérèse também) ainda depois de todos os problemas ridículos causados por Anne-Marie e que as incomodavam. Assim, considerando tudo o que foi dito, a mensagem central de Anjos do Pecado sobre a vida religiosa e as religiosas é mais positiva do que negativa em geral.
Não menos importante, contudo, é marcar a presença do mistério da Vontade de Deus para Anne-Marie haja vista que não sabemos se ela entendeu perfeitamente esta Vontade ou se ela conseguiu a conversão de Irmã Thérèse ou mesmo se a jovem morreu antes ou depois da profissão dos votos dela pela assassina. E isto pode ter dois aspectos, um positivo e outro negativo.
O positivo, de limitar alguma tendência racionalista do público e ajudá-lo a se inserir mais facilmente na realidade, que não é de todo acessível ao espírito humano, especialmente no “claro-escuro” da Fé, assim como faz o público ter esperança na superioridade da Bondade da Vontade e da Misericórdia Divinas sobre todas as misérias humanas; e o negativo, porque o filme pode insinuar que Deus é indiferente às orações e aos sofrimentos de Anne-Marie em sua busca para agradar a Deus (numa parte da película cai chuva sobre ela quando reza ao fundador do convento[3]), ou a consideração se toda esta vocação de “salvadora das pobres almas” ou o seu discernimento da Vontade Divina não passou de um fruto da prepotência da jovem irmã.
Devemos dizer que, ao contrário desta imperfeição, da tendência ao subjetivismo, o filme certamente nos inclina mais para o aspecto positivo do que para o negativo[4], considerando ainda mais as qualidades da Irmã Anne-Marie, das irmãs dominicanas e as mudanças ocorridas na assassina Thérèse, e é por esta razão que acreditamos que Anne-Marie cumpriu, mesmo que defeituosamente, com a Vontade de Deus para ela. Mas se não fosse por este defeito da jovem freira, não poderíamos concluir, vale pontuar, em consideração ao aspecto positivo, pela interpretação na qual a Providência se desenvolve para o bem do homem em superioridade aos pecados do mesmo homem, nem menos pela lição moral de que o orgulho pode corromper até mesmo as melhores intenções (ser santos e ajudar os outros, por exemplo), e que, portanto, devemos estar vigilantes e combatê-lo vigorosamente.
Finalmente, Anjos do Pecado é, pensamos, uma das grandes obras do cinema daquelas que vimos até este momento em função de sua história e seus personagens que nos fomentam a esperança na Providência de Deus e do simbolismo católico relativo a Anne-Marie e Thérèse mesmo com os problemas de clareza deste, mas também em função da beleza da obra causada pelos elementos da “cinematografia” bressoniana e pela percepção no geral positiva (e por que não realista?) da vida religiosa e das freiras. Deste modo, o filme de Robert Bresson é incontornável para quem gostaria de conhecer bem a nata do cinema e de fato útil para quem gostaria, já sendo um católico bem formado e maduro, de optar por uma vocação religiosa.
[1] Para assistir ao filme: https://gloria.tv/post/EADqRWTvqLwn1KrZsqVLycwmE .
[2] Não concordamos inteiramente com o pensamento cinematográfico de Bresson tal qual expresso em suas Notas de um Cinematógrafo, especialmente com sua tentativa de querer não apenas recriar a realidade através da câmera, mas também, tal qual um demiurgo, de criá-la efetivamente pelo cinema. Muito menos concordamos com sua concepção da verdade, que para ele, a título de ilustração, pode ser a de que Deus existe ou não, o que não importa tanto quanto que conseguiríamos perceber que há uma verdade a esta questão e que a captamos, ainda que não possamos exprimi-la ou que ela nos fuja depois de tentarmos “verbalizá-la”. Voltaremos a este último ponto na quarta nota.
[3] Há algumas imprecisões teológicas nesta parte do filme assim como em outras: “Não é por acaso, tudo é uma sina”, falou uma irmã em outro momento; ou ainda erros teológicos: “Perdão minha mãe, mas ele [o amor-próprio] leva o nome de amor”, disse Anne-Marie em um momento de orgulho sutil contra Madre Saint-Jean; bem como uma citação do jansenista Pascal, mas ainda assim ortodoxa. Entretanto, isto não pesa significativamente para desprezar a obra em análise como arte do belo, pois, pelos motivos que veremos em breve, ela ainda assim consegue propender mais para o bem e o verdadeiro mediante o belo do que para o mal e o falso.
[4] Se este subjetivismo é oriundo da ideia de verdade adotada pelo cineasta, a qual já seria insipiente aqui, não o sabemos confirmar. Mais uma vez, todavia, fato ou não, isto não influi substancialmente em nada para a rejeição desta obra como arte do belo.