Com a autorização do autor, disponibilizamos pela primeira vez em língua portuguesa o artigo do Pe. Chad Ripperger, ordenado na Fraternidade Sacerdotal de São Pedro(FSSP), sobre as devidas distinções dos termos “catolicismo conservador” e “catolicismo tradicional”, com suas respectivas nuances e características fundamentais. Artigo publicado na Latin Mass Magazine.
Entendemos que artigos desta natureza são necessários, num tempo de imensa confusão em que nos encontramos, onde muitos pseudo-tradicionais se definem como “tradicionais” e alguns até de “tradicionalistas”, quando justamente lutam por asfixiar todas as principais pautas dos católicos tradicionais, em defesa da Doutrina Católica de sempre, amparada na Tradição divina e também na tradição eclesiástica. Não raro, muitos destes pseudo-tradicionais trincam os dentes e reviram o estômago ao escutar os termos “missa de sempre” ou “Igreja de sempre”, partindo de uma postura arqueologista de Tradição, tão cara a certos estratos modernistas, que buscam em certos escritos inexatos ou incompletos dos Santos Padres, brechas e margens para defender erros doutrinais já condenados pela Igreja nos séculos posteriores.
Muito salutar seria, se pudéssemos nos designar apenas como católicos, pois é o que somos e nesta Fé queremos viver e morrer. Mas devido às diversas correntes completamente antagônicas presentes há tempos na crise que assola a Santa Madre Igreja, o emprego de certas distinções se faz necessário. Conhecê-los em sua real acepção também. Não se trata de meros “rótulos” empregados a esmo, mas de posicionamentos irredutíveis entre si, e que portanto, precisam ser designados. Vale deixar claro que embora tais termos não possuam uma univocidade, isto não implica em concluir que não tenham um significado real e bem direcionado conforme às circunstâncias atuais.
Pe. Ripperger possui um vasto conhecimento teológico sendo também versado na sã filosofia tomista, com um trabalho notável especificamente na área de antropologia/psicologia. O padre também exerce um ministério de exorcismo e formação de padres exorcistas tradicionais, sempre em serviço da Igreja. Desejamos a todos uma profícua leitura.
Tradução: Danilo Rehem e João Medeiros.
Publicado originalmente em inglês The Latin Mass Magazine: the Journal of Catholic Culture and Tradition
CATOLICISMO CONSERVADOR
VS. CATOLICISMO TRADICIONAL
PE. CHAD RIPPERGER, FSSP – PRIMAVERA DE 2001
Distinções com diferenças filosóficas
Em 1996, um grupo de amigos almoçou em Roma no colégio tchecoslovaco. Um dos padres que celebrava a missa de acordo com o novo rito ficou um pouco estupefato. Ele havia escrito um artigo no qual discutia certos aspectos da reforma litúrgica. Sua perplexidade veio do fato de que os tradicionalistas atacaram seu artigo e ele não conseguia entender o porquê. Um seminarista tradicionalista disse ao padre: “Nós concordamos que algo deve ser feito sobre a liturgia, mas não concordamos sobre o que deve ser feito”. Tradicionalistas e neoconservadores com frequência se consideram enganadores, e a razão para isso tem a ver com a relação que cada posição mantém com respeito à tradição eclesiástica.
O termo “tradicionalista” tem dois significados diferentes. O primeiro é a heresia condenada pela Igreja, ou seja, um sistema filosófico/religioso que deprecia a razão humana e estabelece a tradição do homem como único critério de verdade e certeza. Essa heresia nega a capacidade da razão de saber a verdade e, portanto, afirma que a verdade deve ser adquirida somente por meio da tradição. É diferente do movimento atual na Igreja, que reconhece claramente a capacidade da razão de conhecer a verdade, mas que vê o bem da tradição da Igreja e gostaria de vê-la restabelecida.
O termo “neoconservador”, por outro lado, refere-se àqueles que são considerados os membros mais conservadores da Igreja. Na maioria das vezes, eles mantêm posições ortodoxas, mas não afirmam que é estritamente necessário se reconectar com a tradição eclesiástica. O prefixo “neo” é usado porque eles não são os mesmos que os conservadores em autoridade na Igreja imediatamente antes, durante e depois do Concílio Vaticano II. Os conservadores atuais, ou seja, os neoconservadores, são diferentes dos conservadores daquele tempo na medida em que aqueles procuravam manter atuais as tradições eclesiásticas que foram eventualmente perdidas.
Todos esses rótulos têm uma certa inadequação, é verdade, mas uma vez que operam no clima eclesiástico atual, vamos usá-los aqui para denotar certas posições teológicas e filosóficas. Deve-se notar, entretanto, que o termo “liberal” muitas vezes é enganoso. Muitos “liberais” são, de fato, heterodoxos e não acreditam no que a Igreja acredita. Alguém pode ser legitimamente um liberal se, e somente se, defender todos os ensinamentos autênticos da Igreja e, em questões de disciplina ou debate legítimo, manter uma postura mais branda. Mas muitas vezes o liberalismo é apenas outro nome para o que é realmente heterodoxo.
Nos manuais, livros e catecismos de teologia clássica, a palavra “tradição” tinha um significado duplo. O primeiro significado do termo “tradição” foi retirado de sua raiz latina – tradere – que significa “passar adiante”. Nesse sentido, a palavra tradição se refere a todas as coisas que são transmitidas de uma geração à outra. Isso incluiria todas as verdades divinas que a Igreja passa para as gerações subsequentes, incluindo as Escrituras.
O segundo, ou mais restritivo, sentido de tradição, refere-se a uma divisão dupla dentro do que é transmitido e não escrito. Nesse caso, a Escritura se distingue da tradição à medida que a Escritura é escrita, enquanto tradição, no sentido mais estrito, se refere às coisas não escritas que foram transmitidas. A tradição no sentido mais estrito, então, é dividida em tradição divina e tradição eclesiástica. A tradição divina é ainda dividida de acordo com a tradição do Senhor (aquela que foi dada diretamente por Nosso Senhor enquanto na terra) e a tradição apostólica (aquela que os Apóstolos transmitiram sob a inspiração do Espírito Santo). ¹
A tradição divina é aquela tradição que constitui uma das fontes de revelação, ou seja, uma fonte de nosso conhecimento sobre as coisas que foram reveladas ao homem por Deus. Isso significa que a tradição divina é intrínseca ao Depósito da Fé, que constitui todas as verdades divinamente reveladas necessárias para a salvação e transmitidas pela Igreja em uma tradição ininterrupta. Por ser intrínseca ao Depósito da Fé, esta forma de tradição é às vezes chamada de tradição intrínseca, cujos primeiros exemplos são o Magistério da Igreja e os sacramentos, uma vez que foram instituídos por Jesus Cristo e transmitidos, e serão transmitidos até o fim dos tempos. ²
A tradição eclesiástica compreende todas as coisas que não são intrínsecas ao Depósito da Fé, mas que constituem a herança e o patrimônio do trabalho das gerações anteriores, graciosamente transmitidas pela Igreja às gerações subsequentes para seu benefício. Por ser extrínseca ao Depósito da Fé, a tradição eclesiástica também é chamada de tradição extrínseca, cujos exemplos incluem o código disciplinar da Igreja conforme estabelecido no direito canônico e os ensinamentos não infalíveis do Magistério ordinário. Isso incluiria coisas como aquelas contidas em exortações apostólicas e encíclicas nas quais a infalibilidade não é desfrutada – como, por exemplo, quando o Papa Leão XIII em Immortale Dei afirma que a Igreja é uma sociedade perfeita.
Porque o próprio Deus confiou o Depósito da Fé à Igreja Católica, a Igreja Católica é inerentemente tradicional. Visto que todos os homens desejam saber por natureza³, a Igreja não pode deixar de desenvolver uma tradição eclesiástica. Uma vez que o homem recebeu o Depósito da Fé, ele naturalmente refletiu sobre o Depósito, resultando em uma maior compreensão dele. Esse entendimento foi então transmitido. Isso também significa que a própria Igreja iria julgar o Depósito em atos magisteriais e esses atos magisteriais se tornariam parte da tradição eclesiástica. A tradição eclesiástica, portanto, foi se formando ao longo do tempo na vida da Igreja, ao longo dos vinte séculos de sua existência. Isso também indica que é preciso distinguir entre o que pertence ao depósito e o que não pertence. A Igreja às vezes julga o Depósito da Fé para esclarecer o ensino contido no Depósito e para o bem da Igreja, como quando Pio IX proclamou a Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Outros atos magisteriais são meramente extrínsecos ao Depósito da Fé e não apontam necessariamente para nada dentro do Depósito, mas que podem estar ligados ao Depósito de alguma forma. Isso incluiria alguns atos magisteriais comuns, bem como questões de disciplina. No entanto, a tradição eclesiástica contém mais coisas do que apenas os atos do Magistério.
Historicamente, a tradição eclesiástica (ou extrínseca) se desenvolveu de acordo com dois princípios:
O primeiro princípio foi o próprio Depósito da Fé. Os católicos usaram os ensinamentos do Depósito para desenvolver escolas de espiritualidade, disciplina e legislação da Igreja, bem como todas as outras coisas que pertencem à tradição eclesiástica. Visto que o ensino de Cristo deve governar a vida da Igreja, era necessário que qualquer tradição extrínseca autêntica (por exemplo, o direito canônico) fosse consistente com esses ensinamentos. Qualquer coisa que fosse contrária aos ensinamentos contidos no Depósito causou grande aflição à Igreja, mas com o tempo foi excluída da vida da Igreja. Aqui temos em mente aqueles que desenvolvem ensinamentos heterodoxos próprios (heresias), bem como espiritualidades e costumes contrários aos ensinamentos da Igreja.
O segundo princípio era a natureza do homem. A própria Escritura nos diz muito sobre o homem e, à medida que os sistemas filosóficos avançavam no entendimento da natureza do homem, especialmente no período medieval, a tradição extrínseca baseava-se no conhecimento dessa natureza. Além disso, era sabido que era uma natureza ferida, ou seja, afetada pelo Pecado Original, de modo que a tradição extrínseca foi projetada para auxiliar o homem em sua condição. Por exemplo, muitas escolas de espiritualidade e regras das ordens religiosas foram planejadas para ajudar o homem a superar sua propensão à obstinação e concupiscência a fim de se conformar aos ideais ensinados no Depósito. Aqueles que moldaram a tradição extrínseca eram frequentemente santos guiados e ajudados pela ajuda divina no estabelecimento de algum costume ou aspecto da tradição extrínseca que foi transmitido às gerações subsequentes. A tradição extrínseca veio a constituir o magnífico patrimônio e herança de todos os católicos.
À medida que a crise modernista cresceu sob o impulso da filosofia moderna, a tradição extrínseca foi erodida e subvertida devido a vários fatores. O primeiro foi uma mudança de opinião sobre a natureza do homem. Com o ataque do racionalismo, então o empirismo e mais tarde o kantismo e outras inovações modernas sobre a natureza do homem, a visão tomista e realista do homem foi suplantada. No início, isso ocorria fora da Igreja e era mantido sob controle pelo ensino formal dentro da Igreja que mantinha uma visão correta do homem. Os protestantes, não tendo uma herança intelectual, rapidamente sucumbiram às filosofias modernas. À medida que a crise modernista se espalhou dentro da
Igreja, e a curiosidade e o fascínio pela filosofia moderna aumentaram, a visão do homem mantida pelos católicos começou a mudar no crepúsculo do século XIX e durante o século XX.
O racionalismo também mudou a forma como o homem via a revelação. Visto que os racionalistas não acreditam que se possa chegar ao verdadeiro conhecimento intelectual por meio dos sentidos, então o que pertencia aos sentidos foi sistematicamente ignorado ou rejeitado. Uma vez que a revelação foi introduzida na realidade sensível, a revelação foi atacada diretamente. Além disso, se alguém está separado da realidade, então está trancado dentro de si mesmo e, assim, o que pertence à própria experiência torna-se fundamental. Depois de Descartes veio Spinoza, que sistematicamente atacou a autenticidade da tradição oral em relação às Escrituras4, e por meio de sua filosofia ele começou a mudar a visão das pessoas sobre o mundo. Conforme o empirismo ascendeu, a visão do homem simplesmente como um ser material levou a fixar o significado do homem no “agora” ou sempre no presente. Uma vez que, para o empirista, o significado do homem é encontrado naquilo que ele percebe e sente, esse desenvolvimento acabou por levar à uma falta de interesse no passado, porque o passado, como tal (e o futuro nesse caso), não pode ser percebido, tampouco realizará nossos desejos sensíveis. Com o advento de Hegel, que sustentava que havia apenas uma coisa existindo em um estado de fluxo constante, a base intelectual foi lançada para uma falta de interesse e desconfiança com a tradição. Com a combinação da dialética hegeliana com o ceticismo de Spinoza em relação às fontes das Escrituras, o passado (incluindo todas as formas de tradição) passou a ser considerado obsoleto ou antiquado, e a tradição não confiável. Como consequência, aqueles que queriam impor algum ensinamento religioso baseado na tradição ou na história tornaram-se suspeitos.
Ao mesmo tempo em que as bases intelectuais para confiar na tradição ruíram nas mentes dos intelectuais modernos sob o ímpeto da filosofia moderna, surgiu um crescente imanentismo. O imanentismo é uma filosofia que afirma que qualquer coisa importante está contida no indivíduo; o indivíduo se torna a medida ou padrão pelo qual as coisas são julgadas. O imanentismo sustenta essencialmente que a realidade exterior não é importante, exceto na medida em que podemos nos expressar nela. O que é realmente importante é o que está dentro de nós. O imanentismo veio de muitas fontes, mas três são de particular importância:
O primeiro foi Kant, que, por meio de uma epistemologia fundada no ceticismo cartesiano e empírico em relação aos sentidos, prendeu o indivíduo em sua própria mente, logicamente falando. Isso significava que tudo estava dentro de si mesmo ou em sua própria mente, o que por sua vez significava que as experiências do homem eram essencialmente imanentes – isto é, elas estão dentro ou permanecem dentro de si mesmo.
A segunda fonte de imanentismo era a localização da experiência teológica nas emoções. Isso foi desenvolvido por Friedrich Schleiermacher. Para Schleiermacher, a religião era principalmente uma expressão de piedade, e a piedade era encontrada apenas nas emoções. A religião não poderia ficar satisfeita com tratados e análises metafísicas – isto é, uma abordagem racional – mas, ao invés, tinha que ser algo emocional. Isso levou à imanentização da religião, uma vez que a piedade ou experiência religiosa era vista como algo dentro do indivíduo. Frequentemente vemos essa imanentização hoje: as pessoas esperam que a liturgia seja conformada aos seus estados emocionais, em vez de se conformarem elas mesmas à um culto objetivo que, por sua vez, se conforma à Deus.
A terceira fonte que levou à imanentização e, portanto, forneceu uma base intelectual para a aceitação apenas do presente e uma rejeição do passado, foi a obra de Maurice Blondel. Blondel afirmou:
O pensamento moderno, com suscetibilidade ciumenta, considera a noção de imanência como a própria condição do filosofar; isto é, se entre as ideias correntes há uma que ela considera marcar como um avanço definitivo, é a ideia, que no fundo é perfeitamente verdadeira, que nada pode entrar na mente de um homem que não saia dele, e corresponda, de alguma forma, para uma necessidade de expansão, e que não há nada na natureza do ensino histórico ou tradicional ou obrigação imposta de fora que seja válida para ele… ”5
Para Blondel, só as coisas que vêm do próprio homem e que lhe são imanentes têm algum significado. Nenhuma tradição ou história tem qualquer relação com suas considerações intelectuais, a menos que venha de alguma forma dele mesmo.
Essas três fontes de imanentismo, conforme influenciaram a Igreja durante o declínio de uma fase intelectual do Modernismo na década de 1950 e no início da década de 19606, forneceram a base para uma ruptura psicológica com a tradição como norma. Como observa Peter Bernardi, Blondel estava “trabalhando em uma época em que a Igreja estava apenas começando a tomar consciência de uma certa quebra em sua tradição”. A obra de Blondel e o influxo de outros pontos de vista filosóficos modernos, que eram antitéticos à tradição eclesiástica, tiveram um impacto drástico no Vaticano II.7 Na época em que o Vaticano II foi convocado, a base intelectual estava pronta para uma rejeição sistemática de todos os aspectos da tradição eclesiástica.
Em resumo: Blondel e outros, sob a influência da filosofia moderna, pensaram que o homem moderno não poderia ficar satisfeito com as formas de pensar do passado. Eles forneceram uma base intelectual sobre a qual a Igreja, com um
Concílio como catalisador, poderia se “atualizar” ou passar por um “aggiornamento”. Com os fundamentos para a tradição extrínseca tendo sido suplantados, a tradição extrínseca foi perdida. Em outras palavras, como a visão do homem havia mudado e dado que a visão do Depósito da Fé foi submetida a uma análise moderna, a tradição extrínseca, que se apoiava nesses dois, entrou em colapso. No momento, estamos vivendo os efeitos intensos desse colapso. Os católicos de hoje se fixaram no aqui e agora e, em consequência, as tradições da Igreja passaram a ser tratadas não apenas como irrelevantes, mas também como algo a se desconfiar e até, às vezes, demonizar.
Isso teve vários efeitos. O primeiro é que aquelas coisas que pertencem à tradição extrínseca e não tocam na tradição intrínseca são ignoradas. Isso se manifesta no fato de que alguns documentos eclesiais de hoje não têm qualquer relação com as posições ocupadas pelo Magistério antes do Concílio Vaticano II. Por exemplo, no documento do Vaticano II sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio, não há uma única menção aos dois documentos anteriores que tratam do movimento ecumênico e outras religiões: Satis Cognitum, de Leão XIII, e Mortalium Animos, de Pio XI. A abordagem do ecumenismo e de outras religiões nesses documentos é fundamentalmente diferente da abordagem do documento do Vaticano II ou Ut Unum Sint, do Papa João Paulo II. Enquanto que o atual Magistério pode alterar um ensino que se enquadra no ensino magisterial ordinário não infalível, quando o Magistério se pronuncia nestes casos, tem, entretanto, uma obrigação, devido aos requisitos da virtude moral da prudência, de explicar como o ensino anterior estava errado ou como agora deve ser entendido de forma diferente, discutindo os dois ensinamentos diferentes. Todavia, não foi isso o que aconteceu. O Magistério desde o Vaticano II muitas vezes ignora os documentos anteriores que podem parecer estar em oposição ao ensinamento atual, deixando para os fiéis descobrir como os dois são compatíveis, como nos casos de Mortalium Animos e Ut Unum Sint. O que leva à confusão e brigas internas dentro da Igreja, bem como a aparência de contradição com os ensinamentos anteriores da Igreja sem explicação ou justificativa fundamentada.
Além disso, o problema não é apenas com respeito ao Magistério anterior ao Vaticano II, mas também com o Magistério desde o Concílio. Por exemplo, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) em 1975 (Declaração sobre Certas Questões Relativas à Ética Sexual, conforme encontrada na tradução oficial em inglês do Vaticano pela The Wanderer Press, 128 E. 10th St., St. Paul, MN 55101) afirma o seguinte a respeito da masturbação: “A principal razão é que, qualquer que seja o motivo para agir dessa forma, o uso deliberado da faculdade sexual fora das relações conjugais normais contradiz essencialmente a finalidade da faculdade.” Isso indica que, independentemente da intenção ou motivo, o ato em si é gravemente imoral. Então, no Catecismo da Igreja Católica8, é dada uma definição que parece permitir diferentes intenções para modificar se tal ato é mau ou não: “Masturbationis nomine intelligere oportet voluntarium organorum genitalium excitationem, ad obtinendam ex ea veneream voluptatem” (“Por masturbação entende-se a excitação voluntária dos órgão genitais, para daí retirar um prazer venéreo.”). A última parte da definição, portanto, inclui no ato de masturbação uma finalidade – ” retirar um prazer venéreo”. Isso parece contradizer o ensinamento anterior da Igreja, bem como o ensinamento da CDF. Se não o fizermos por prazer, isso significa que não é masturbação? Por exemplo, se alguém comete este ato para determinar sua fertilidade, isso o justifica? Pode-se retificar a situação argumentando que, quando isso é feito por prazer, é um exemplo de masturbação, mas que a definição real é a que a Igreja sempre sustentou. Claramente, porém, este exemplo é um testemunho de quão descuidado o Magistério se tornou em sua expressão teológica.
Este tipo de comportamento, juntamente com a invasão filosófica moderna na vida intelectual da Igreja e a má teologia daí resultante, levou a uma espécie de “magisterialismo”. O magisterialismo é uma fixação nos ensinamentos que pertencem apenas ao Magistério presente. Visto que a tradição extrínseca foi subvertida e o Vaticano tende a promulgar documentos que demonstram uma falta de preocupação com alguns atos magisteriais anteriores, muitos começaram a ignorar os atos magisteriais anteriores e agora ouvem apenas o Magistério atual.
Esse problema é exacerbado por nossas atuais condições históricas. À medida que a comunidade teológica começou a se desfazer antes, durante e depois do Vaticano II, aqueles que se consideravam ortodoxos eram aqueles que eram obedientes e intelectualmente submissos ao Magistério, já que os dissidentes não eram ortodoxos. Portanto, o padrão da ortodoxia foi deslocado das Escrituras, da tradição intrínseca (da qual o Magistério faz parte) e da tradição extrínseca (que inclui atos magisteriais do passado, como o Syllabus Errorum de Pio IX), para um estado psicológico em que apenas o atual Magistério é seguido.
Os neoconservadores adotaram essa forma de pensar. O único padrão pelo qual julgam a ortodoxia é se alguém segue ou não o Magistério atual. Como regra geral, os tradicionalistas tendem a ser ortodoxos no sentido de que são obedientes ao Magistério atual, embora discordem em questões de disciplina e tenham algumas reservas sobre certos aspectos dos ensinamentos magisteriais atuais que parecem contradizer o Magistério anterior (por exemplo, o papel do movimento ecumênico). Os tradicionalistas tendem a tomar não apenas o Magistério atual como sua norma, mas também as Escrituras, a tradição intrínseca, a tradição extrínseca e o Magistério atual como os princípios de julgamento do pensamento católico correto. Isso é o que distingue tradicionalistas e neoconservadores.
Inevitavelmente, esse magisterialismo conduziu à uma forma de positivismo. Uma vez que não existem princípios de julgamento além do atual Magistério, o que quer que o atual Magistério diga é sempre o que é “ortodoxo”. Em outras palavras, psicologicamente os neoconservadores foram deixados em uma posição em que a tradição extrínseca e intrínseca não está mais incluída nas normas de julgar se algo é ortodoxo ou não. Como resultado, tudo o que sai do Vaticano deve ser mantido, independentemente do peso de sua autoridade, mesmo que contradiga o que foi ensinado com autoridade comparável no passado. Como os atos ordinários não infalíveis do Magistério podem ser errôneos, isso deixa o indivíduo em situação precária se tomar como verdadeiro apenas o que diz o Magistério presente. Embora sejamos obrigados a dar assentimento religioso até mesmo aos ensinamentos não infalíveis da Igreja, o que devemos fazer quando um documento magisterial contradiz outros ensinamentos atuais ou anteriores e um não tem mais peso de autoridade do que o outro? É muito simplista apenas dizer que devemos seguir o ensino atual.
O que aconteceria se em um período de crise, como o nosso, um ensinamento magisterial comum não infalível contradissesse o que era de fato a verdade? Se uma parte do Magistério contradiz a outra, estando ambas ao mesmo nível, em que acreditar?
Infelizmente, o que aconteceu é que muitos neoconservadores têm agido como se os ensinamentos magisteriais ordinários não infalíveis (como, por exemplo, o papel da inculturação na liturgia como declarado no Catecismo da Igreja Católica) sejam, de fato, infalíveis quando o atual Magistério os promulga. Esta é uma mentalidade positivista. Muitas das coisas que os neoconservadores fazem são o resultado da adoção implícita de princípios que eles não consideraram total ou explicitamente. Muitos deles negariam essa caracterização porque não se apegam intelectualmente ao que, de fato, são seus princípios operativos.
À medida que o positivismo e o magisterialismo cresciam e a tradição extrínseca deixava de ser uma norma para julgar o que deveria e o que não deveria ser feito, os neoconservadores aceitaram a noção de que a Igreja deve se adaptar ao mundo moderno. Assim, em vez de ajudar o mundo moderno a se adaptar aos ensinamentos da Igreja, ocorreu o processo inverso. Isso tem levado a uma preocupação excessiva em manter posições politicamente corretas em questões seculares. Em vez de ter uma certa desconfiança do mundo – que Cristo nos exorta a ter – muitos sacerdotes ensinam alguma coisa do púlpito, desde que não vá causar problemas. Por exemplo, quantos padres estão dispostos a pregar contra o feminismo antibíblico? O fato é que adotaram uma forma imanentizada de ver o que deve ser feito, muitas vezes do ponto de vista emocional. Juntamente com o politicamente correto, isso incapacitou as autoridades eclesiásticas diante do mundo e dentro da própria Igreja, onde o processo de imanentização, com sua compreensão falha da natureza do homem e sua condição de trabalhar sob o Pecado Original, minou severamente a disciplina. Mesmo aqueles que tentam ser ortodoxos se acostumaram a normas disciplinares mais brandas, que se adaptam bem à natureza decaída, resultando em uma falta de distanciamento da forma atual de fazer as coisas e uma consequente relutância dos neoconservadores em exercer autoridade – precisamente porque lhes falta o vital desapego necessário para fazê-lo.
Tudo o que foi dito acima resultou na rejeição neoconservadora da tradição extrínseca como norma. É por isso que, mesmo nos “bons” seminários, o patrimônio espiritual dos santos quase nunca é ensinado. Além disso, isso explica por que os neoconservadores parecem confusos sobre o real significado da tradição. Uma vez que não é um princípio de julgamento para eles, não podem discuti-lo em profundidade. Na verdade, eles ignoram a tradição extrínseca quase tanto quanto os “liberais”. Mesmo quando os neoconservadores expressam o desejo de se recuperar e seguir a tradição extrínseca, raramente o fazem quando se trata de tomar decisões concretas.
Agora fica mais claro por que existe um tipo de suspeita psicológica entre neoconservadores e tradicionalistas: eles têm perspectivas fundamentalmente diferentes. Os neoconservadores aceitaram psicológica ou implicitamente que não se pode confiar na tradição extrínseca, enquanto os tradicionalistas consideram a tradição extrínseca algo bom, algo que é produto da sabedoria e do trabalho dos santos e da Igreja ao longo da história. Por essa razão, a diferença fundamental entre neoconservadores e tradicionalistas é que o neoconservador vê o passado com os olhos do presente, enquanto o tradicionalista vê o presente com os olhos do passado. Historicamente, a mens ecclesiae ou mente da Igreja foi expressa através da tradição extrínseca. Isto significa que a Igreja, uma vez que recebe tanto os seus ensinamentos do passado como o trabalho dos santos e do Magistério prévio por tradição, sempre olhou para o presente com os olhos do passado. Nisso, ela olhou para o presente não como o homem sob a influência da filosofia moderna olhou para o presente, mas através dos olhos de seu Senhor, que lhe deu Seu ensinamento quando estava na terra (ou seja, no passado). Só no tempo de Cristo foi possível olhar com autenticidade para o passado com o que era então o olhar do presente, visto que Cristo foi a realização do passado. Mas, uma vez que a obra de Cristo se tornou parte da história e Ele ascendeu ao céu, devemos sempre olhar para trás, para Cristo e para nossa tradição, para uma compreensão autêntica do presente.
Essa mudança fundamental de perspectiva deixou os tradicionalistas com a sensação de que estão lutando pelo bem da tradição extrínseca sem a ajuda do atual Magistério, e muitas vezes impedidos por ele. Liturgicamente, os tradicionalistas julgam o Novus Ordo à luz da Missa de Pio V e os neoconservadores julgam a Missa Tridentina, como é chamada, à luz do Novus Ordo. Isso vem do hegelianismo, que sustenta que o passado é sempre entendido à luz do presente; a tese e a antítese são entendidas à luz de sua síntese. Essa perspectiva leva à uma mentalidade de que o mais novo é sempre melhor, porque a síntese é melhor do que a tese ou a antítese tomadas isoladamente. Sendo afetados por isso, os neoconservadores muitas vezes são incapazes de imaginar que a disciplina atual da Igreja pode não ser tão boa quanto a disciplina anterior. Há uma mentalidade hoje que afirma que “porque está no presente [hegelianismo], porque vem de nós [imanentismo], é necessariamente melhor”.
Além disso, o próprio amor dos neoconservadores pela Igreja e o forte apego emocional ao Magistério faz com que considerem inimaginável que a Igreja possa vacilar, mesmo no que diz respeito a questões disciplinares. Como o pai que ama sua filha e, portanto, tem dificuldade em imaginá-la fazendo algo errado, os neoconservadores têm dificuldade em conceber que o Espírito Santo não garante a infalibilidade em questões de disciplina ou o ensino magisterial ordinário não infalível. Os tradicionalistas, confrontados por uma Igreja em crise, sabem que algo deu errado em algum lugar. Como resultado, eles estão, creio eu, mais sóbrios ao avaliar se a Igreja exerce ou não a infalibilidade em um determinado caso. Isso, aliado ao fato de olharem o presente com os olhos do passado, ajuda os tradicionalistas a verem que o ônus está no presente, e não no passado, para se justificar.
O domínio do hegelianismo e do imanentismo também levou a uma forma de amnésia eclesiástica coletiva. No início da década de 1960, existia uma geração que recebeu toda a tradição eclesiástica, pois a tradição ainda era vivida. No entanto, por terem trabalhado sob os erros acima mencionados, aquela geração optou por não passar a tradição eclesiástica para a geração seguinte como algo vivo. Consequentemente, em uma geração, a tradição extrínseca virtualmente morreu. No final da década de 1960 e início da década de 1970, a formação no seminário e na universidade na Igreja Católica excluía tudo o que pertencia à tradição eclesiástica. Uma vez que a geração anterior escolheu este curso – não para lembrar e ensinar as coisas do passado – a tradição nunca foi passada adiante e assim aqueles que eles formaram (a geração atual) foram condenados a sofrer o desconhecimento coletivo sobre seu patrimônio e herança.
Um outro efeito do que consideramos é que nenhum ensinamento anterior foi deixado intocado. Em outras palavras, parece que mais documentação foi emitida nos últimos quarenta anos do que nos 1.960 anos anteriores. Cada ensinamento passado, se o Magistério atual o considerar digno de nota para o homem moderno, é tocado de novo e visto pelas lentes do imanentismo atual. Dá a impressão de que os ensinamentos do Magistério anterior não se sustentam por si próprios e devem receber alguma forma de “relevância” ao serem novamente promulgados em um documento atual. Além disso, os documentos atuais muitas vezes carecem da clareza e da brevidade do Magistério anterior e, com relativamente poucas exceções, são excessivamente longos e tediosos para ler em sua totalidade. Como resultado, a frequência dos documentos, juntamente com sua extensão, minou sua autoridade porque, como regra geral, as pessoas simplesmente não têm a disciplina emocional ou psicológica para explorá-los.
Em resumo, então, as diferenças entre tradicionalistas e neoconservadores estão enraizadas em suas respectivas atitudes em relação à tradição extrínseca ou eclesiástica. Mesmo se um neoconservador sustentar teoricamente9 que a tradição extrínseca tem valor, no entanto, na vivência diária de sua vida e em suas deliberações, ele simplesmente ignora uma grande parte desta tradição, senão toda ela. Mas há esperança, mesmo fora dos círculos que seguem a tradição. Muitos dos jovens, mesmo aqueles em seminários neoconservadores, não são mais sobrecarregados com a bagagem intelectual que afligia seus colegas da geração anterior. Por não terem aprendido praticamente nada sobre religião, carecem de uma perspectiva que possa influenciá-los negativamente em favor de uma visão particular da tradição extrínseca. Muitos deles estão ansiosos para aprender a verdade e não têm ideias preconcebidas sobre o estado atual da Igreja. Como resultado, se eles recebem ou conseguem chegar ao conhecimento de seu patrimônio, muitos o buscando por conta própria, podemos ter a certeza de um futuro melhor. Mas isso requer o conhecimento do problema e a disposição de adotar ou conectar-se à tradição extrínseca, abraçando-a como algo bom. É improvável que o papel da tradição eclesiástica seja resolvido em breve, mas podemos esperar que sua restauração seja parte do plano providencial de Deus.
Referências
1. Christian Pesch, Praelectiones Dogmaticae (Herder & Co., Friburgus, 1924), vol. I, p. 397f.
2. Vatican I, Pastor Aeternus, ch. 2 (Denz. 1825/3058).
3. Aristotle, Metaphysics, Bk. I, ch. 1 (980a22).
4. David Laird Dungan, em seu texto A History of the Synoptic Problem (Doubleday, New York, 1999), reconta como Spinoza desenvolveu o método exegético histórico-crítico e, a partir daquele momento, os estudos das Escrituras começaram a se deteriorar fora da esfera católica. Mais tarde, esses mesmos problemas entrariam na Igreja com uma adoção acrítica dos mesmos métodos.
5. “Letter on Apologetics” como encontradas no artigo Maurice Blondel and the Renewal of the Nature/Grace Relationship, de Peter J. Bernardi, Communio 26 (Winter, 1999), p. 881.
6. A heresia do modernismo ocorreu em quatro fases. A primeira foi a fase inicial, que começou por volta de 1832, quando foi chamada de liberalismo, e decorreu até o início do Concílio Vaticano I, em 1869. A segunda fase foi a fase intelligentsia, que começou a infectar a intelligentsia católica mais profundamente. Ela ocorreu entre 1870 e 1907, quando o Papa São Pio X condenou formalmente o modernismo. A terceira fase ocorreu a partir de 1907 e durou até 1955 ou 1960, foi a fase subterrânea, em que os ensinamentos modernistas foram propagados por alguns da intelligentsia em seminários e universidades católicas de maneira discreta. Então, na segunda metade da década de 1950, a fase superficial começou quando a energia intelectual se exauriu e o que sobrou foi a aplicação prática dos ensinamentos vazios do modernismo, que ocorreu durante o período em que o Concílio Vaticano II estava em andamento e que persiste até os dias presentes. O Vaticano II foi o catalisador, ou a oportunidade, aproveitado pelos intelectuais modernistas da fase superficial do passado e do presente para ensinar doutrinas contrárias aos ensinamentos da Igreja.
7. Bernardi observa isso, mas de forma positiva no lugar citado.
8. Editio typica, Libreria Editrice Vatican, 1997, § 2352.
9. Na filosofia, é feita uma distinção entre assentimento nocional e real. O assentimento nocional é quando a pessoa pode fazer um julgamento intelectual de que algo é verdadeiro, mas não determina realmente sua ação ou pensamento. O assentimento real é quando uma pessoa faz um julgamento intelectual sobre a verdade de alguma matéria e realmente vive e pensa de acordo com ele.
Artigo traduzido por Danilo Rehem e João Medeiros, com autorização do Pe. Ripperger e dos editores da Latin Mass Magazine, a partir da versão original em inglês disponível em: http://www.latinmassmagazine.com/articles/articles_2001_SP_Ripperger.html