por Gabriel Klautau Miléo
Lucas Klautau Miléo
Introdução
No dia 12 de maio de 2022, a atriz Cássia Kis anunciou, no programa “Encontro com Fátima Bernardes” da TV Globo, sua conversão ao catolicismo. O pequeno mundo dos cerca de 20% de católicos praticantes brasileiros obviamente ficou extasiado.[1] Afinal, Cássia não só defendeu a vida desde a concepção em um programa abertamente progressista, como também afirmou que “a Fé só existe dentro do catolicismo”, que as famílias numerosas vivem “a verdade” e que deveríamos preferir assistir a Missa Tridentina pois esta seria, na sua expressão, “a Missa dos Apóstolos”[2].
Como já era previsto, as declarações da atriz foram rapidamente objeto de crítica por parte da esquerda, por meio de geniais Tweets “indignados”, que, dada sua evidente superficialidade, não necessitam de réplica. Houve, no entanto, críticas teológicas às falas da atriz, especialmente no meio neoconservador (isto é, que deseja “conservar” o status quo trazido pelas reformas conciliares de 1960). Entre essas críticas destacam-se às do blog “O Catequista”, administrado pelo casal Alexandre e Viviane Varella.
Em sua página no Instagram, os administradores do referido blog associaram a frase da atriz de que a Missa Tridentina seria a “Missa dos Apóstolos” a uma imagem do boneco infantil “Pinóquio”, sugerindo que suas declarações seriam mentirosas. Eles sustentaram que todas as liturgias seriam igualmente “apostólicas” e “tradicionais”, incluindo a liturgia reformada. O latim, tão característico da liturgia tradicional, também supostamente não encontraria respaldo na tradição litúrgica do rito romano pois os apóstolos celebraram originalmente a liturgia em grego e não em latim. Em outra publicação, afirmaram ainda que a declaração de Cássia de que “a Fé só existe dentro do Catolicismo” seria “antipática”, “arrogante” e “não conforme a doutrina da Igreja” (sic). Por fim, concluiram que Cássia teria sido enganada “por grupos influentes de hereges radtrads” (sic).
Obviamente, tais assertivas não correspondem com a realidade, como será demonstrado a seguir.
A “Missa dos Apóstolos”
a) Em que sentido a missa tridentina é a “Missa dos Apóstolos”?
No catolicismo tradicional, aplica-se o termo “Missa dos Apóstolos” e suas versões correlatas (como “Missa de Sempre”) no intuito de se designar que, ao contrário do missal reformado, o missal tradicional – assim como todas as demais liturgias tradicionais presentes na Igreja – é fruto de um desenvolvimento orgânico e homogêneo que remonta à era apostólica. Obviamente, nenhum tradicionalista o emprega no sentido de que a liturgia tradicional seria, em todos os seus detalhes, celebrada de maneira exatamente idêntica à liturgia apostólica.
Ora, diante disso, é absurdo se afirmar que a missa de Paulo VI, apesar de válida e legítima (no sentido de que foi promulgada pela autoridade competente), é, em semelhança à Missa Tridentina, fruto de um desenvolvimento orgânico que remonte à era apostólica. Explica este ponto o próprio cardeal Ratzinger: “No lugar de uma liturgia fruto de um desenvolvimento contínuo, introduziu-se uma liturgia fabricada. Escapou-se de um processo de crescimento e de devir para entrar em outro de fabricação. Não se quis continuar o devir e o amadurecimento orgânico do que existiu durante séculos. Foi substituído, como se fosse uma produção industrial, por uma fabricação que é um produto banal do momento”[3].
A posição da atriz não se origina de grupos dissidentes, como faz supor a publicação, mas encontra suporte no próprio clero da Igreja Católica plenamente regularizado com Roma. Exemplos disso são: o Arcebispo de Polymartium, Dom Thomas Gullickson, ex-núncio da Suíça; o bispo-auxiliar de Astana, Dom Athanasius Schneider, especialista em patrologia; o bispo emérito de Chur, Dom Vitus Huonder, conhecido por se opor ao progressismo na Europa; etc. Coloco abaixo a declaração de cada um deles.
Em dezembro de 2019, o Arcebispo Gullickson escreveu em seu blog pessoal: “A recuperação do Vetus Ordo com todos os seus meandros, o seu latim, os seus silêncios, a sua orientação absoluta é a forma mais adequada para inspirar a verdadeira devoção. Eu só queria poder celebrar sempre assim. Vivemos na esperança! (…) Eu gostaria de ver em uma reforma ou recuperação ou restauração, devolvendo-nos ao terreno sólido da Missa de Todos os Tempos, aquela sementeira inelutável e necessária para o anúncio do Evangelho a partir do enraizamento de uma vida não tão muito escondido em Cristo como imerso nele.”[4]
Já Dom Athanasius, que escreveu um livro inteiro comentando acerca da crise na Igreja, afirma: “A Missa tradicional em latim é verdadeiramente a Missa de todas as épocas e de todas as gerações católicas, não no sentido de cada pequeno detalhe ritual, mas nas suas características essenciais. É a Missa de todos os tempos pelo fato de que seu rito exprime de maneira mais clara e bela a verdade essencial do sacrifício da Missa”[5]
E Dom Vitus Huonder, que,com o aval do Papa Francisco[6], atualmente reside nas dependências da FSSPX, exorta as novas gerações de padres: “Sei que muitos jovens sacerdotes hoje anseiam pela Tradição. É uma simples observação. Não procuro saber as razões disso, mas noto que existe esse desejo pela Tradição, esse desejo pela Missa de todos os tempos. Gostaria de encorajar estes sacerdotes a serem testemunhas, a tentar viver no sentido desta Tradição. Eles não devem ter medo, mesmo que possam ter que encontrar alguns problemas na situação atual. Mas eles não devem deixar isso desencorajá-los, porque ao fazê-lo, eles fazem um ato que valerá a pena em talvez 50, 60 ou 70 anos.”[7]
Até o cardeal Burke, que em nada simpatiza com a FSSPX, concorda com a tese da superioridade da missa tradicional: “Adiferença entre as duas formas [do Rito Romano] é muito gritante… A rica articulação da Forma Extraordinária, que sempre aponta para a natureza teocêntrica da liturgia, é praticamente diminuída ao menor grau possível na Forma Ordinária.”[8]
Seriam todos esses eminentes prelados, críticos do novo missal, também “hereges radtrads revoltados”?
É verdade que a posição do casal Varella, que visa legitimar totalmente as reformas conciliares, representa parte do clero católico, mas claramente não é uma posição unânime entre ele. A posição tradicionalista sempre existiu e continua sendo aceita por boa parte do clero ortodoxo da Igreja.
Diante das deficiências evidentes no rito reformado, que expressa de maneira muito menos acentuada o caráter sacrificial da missa e rompeu o desenvolvimento orgânico da liturgia, não é absurda a ideia de uma restauração da liturgia romana tradicional.
b) O idioma da liturgia cristã primitiva
Antes de entrarmos nesse ponto, é necessário se observar que o maior problema do missal reformadonãoé meramente a questão do idioma em que ele é rezado. Seu maior problema consiste no fato do rito novo ter atenuado grosseiramente na liturgia romana os dogmas católicos do sacrifício propiciatório e da transubstanciação (com uma clara perspectiva ecumênica de o aproximar da ideia da ceia protestante), além de ter sido fruto de uma “fabricação artificial”, que rompeu com um desenvolvimento orgânico que remontava à era apostólica. O espírito modernista que moveu as reformas do rito romano é expresso de maneira evidente por seu compositor, Mons. Aniballe Bugnini, que prometeu de maneira explícita ao L’Osservatore Romano em 11 de Março de 1965, eliminar do futuro rito em elaboração tudo aquilo que desagradasse aqueles que considerava serem seus “irmãos separados”.[9]
Quanto à língua utilizada na liturgia da Igreja Primitiva, a maioria dos manuais de história concordam com a tese de que as liturgias celebradas nas províncias romanas eram em grego, e não em latim.[10] O grego, entretanto, era apenas a língua franca do Império Romano, não a língua vulgar de todas as suas províncias. Tal fato, portanto, ao invés de prejudicar a causa em favor da restauração da liturgia tradicional, corrobora com ela, confirmando a ideia de que, durante os três primeiros séculos de cristianismo, praticamente todo o Ocidente cristão romano celebrava, como regra geral, a liturgia numa mesma língua sagrada.
Afinal, como dito no parágrafo anterior, o grego jamais foi a língua vulgar da maioria das populações que habitavam as províncias do Império Romano. Diversos dialetos existiam nas diversas regiões que estavam sob domínio dos romanos. É anacrônico se pensar que em todas essas regiões a maioria da população era poliglota, dominando perfeitamente o grego além do seu próprio dialeto local, e tendo, por exemplo, acesso a uma educação de qualidade. Observemos o exemplo de Israel, cuja língua oficial era o aramaico.[11] Os rabinos proibiam abertamente as mulheres de estudar, baseados numa interpretação literal das Escrituras (mais especificamente de Dt 4,9), com o Talmud afirmando: “É tolice ensinar a Torá a sua filha” (Sotah 20a). Entre os homens, as dificuldades também eram grandes. Os apóstolos são descritos nos Evangelhos como “homens sem estudo e sem instrução” (Atos 4:13). Até mesmo pessoas com mais condições como o historiador Flávio Josefo admite não ter proficiência em grego, justificando isso nos costumes do seu povo: “nossa nação não encoraja aqueles que aprendem as línguas de muitas nações” (Antiguidades Judaicas XX, XI). E, apesar de tudo isso, a liturgia de Jerusalém nos três primeiros séculos também era celebrada em grego.[12]
Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, as línguas litúrgicas sempre estiveram intrinsecamente relacionadas à língua das Escrituras Sagradas. Como os primeiros cristãos se utilizavam das Escrituras em grego (isto é, o NT original e a LXX), sua liturgia correspondia à língua de tais documentos. Com a adoção oficial posterior de versões latinas das Escrituras por parte da Igreja de Roma (e, de maneira especial, da Vulgata pelo Papa São Dâmaso), a liturgia passa a corresponder ao latim.[13]
De qualquer forma, mesmo com o povo da maioria das jurisdições romanas não compreendendo o grego, os apóstolos universalizaram-no em praticamente todas as províncias romanas. A liturgia romana era, portanto, celebrada numa mesma língua. Mesmo depois que o grego cedeu lugar em importância ao latim (como língua franca do Império), a reverência à língua das Escrituras oficiais da Igreja conservou a liturgia nessa língua.[14] Em nenhum momento o espírito de adequar-se integralmente às delicadas sensibilidades modernas foi aceito, como acontece atualmente.
Apesar do latim em si ainda não existir na liturgia romana dos primeiros séculos, o princípio geral de uma língua sagrada unificando o rito romano já existia. Situação análoga aconteceu com o dogma da Imaculada Conceição, que, apesar de não ser encontrado explicitamente nos escritos dos primeiros séculos, estava contido no princípio geral de se atribuir à Maria, em virtude de sua maternidade divina, a máxima pureza possível. Este princípio mariológico pode ser encontrado já no século II, por meio do Protoevangelho de Tiago, que apresenta Maria como sendo pura “como uma pequena pomba” (VIII,1) para poder servir dignamente à sua missão maternal.[15]
A tradição litúrgica do rito romano, grita, portanto, a favor de Cássia e não contra ela.
“A Fé só existe no Catolicismo”
Em um dos seus stories no Instagram, o casal Varella também questionou a declaração de Cássia Kis de que só existiria Fé dentro do Catolicismo. Para eles, trata-se de uma afirmação “antipática”, “arrogante” e “não conforme a doutrina da Igreja” (sic). O argumento de Fábio Salgado, citado por eles como fundamento de sua crítica, seria o de que haveria, por exemplo, fé sobrenatural numa pessoa batizada validamente dentro do protestantismo ou da ortodoxia oriental.
De fato, se esta pessoa hipotética estiver numa situação de ignorância invencível ou não tiver ainda alcançado a idade da razão, terá fé sobrenatural. Caso contrário, se o sujeito receber o sacramento do batismo sem as devidas disposições, o sacramento será válido, mas não produzirá frutos.
No primeiro caso, no entanto, a pessoa será incorporada à Igreja Católica: “alguém que recebeu o batismo válido de um herege é feito membro da Igreja Católica em virtude desse [batismo]; pois o erro pessoal de quem batiza não pode privá-lo de sua felicidade, contanto que o batizador forneça o sacramento na fé da verdadeira Igreja e observe suas disposições quanto à validade do batismo. Suárez afirma isso admiravelmente em seu Fidei catholicae defensio contra errores sectae Anglicanae, livro 1, capítulo 24, onde prova que o batizado se torna membro da Igreja Católica, acrescentando ainda que se o herege, como muitas vezes acontece, batiza um criança incapaz de fazer um ato de fé, isso não é obstáculo para que ele receba o hábito da fé no batismo”[16].
A Fé dessa pessoa não é uma fé diferente da fé católica pois não existe uma outra fé sobrenatural que não seja a fé católica. A atriz simplesmente quis dizer, portanto, o óbvio: não existe outra fé sobrenatural que não seja a própria fé católica, infusa em nossas almas no momento do batismo.
Conclusão
As críticas neoconservadoras às declarações da atriz Cássia Kis não se sustentam. A Missa Tridentina é de fato a “Missa dos Apóstolos” pois, diferentemente da liturgia reformada, é fruto de um desenvolvimento orgânico e homogêneo que remonta à era apostólica. Cássia não errou ao utilizar essa expressão para a ela se referir, assim como não errou ao declarar que não existe outra fé sobrenatural que não se identifique com a própria fé católica. Cássia é só mais um exemplo do crescimento do catolicismo tradicional no mundo, que encontra suporte em prelados eminentes da Igreja como Dom Gullickson, Dom Schneider, Dom Huonder, etc. Viva a Missa de Sempre!
[1] PEW RESEARCH CENTER. Religion in Latin America: Widespread Change in a Historically Catholic Region. 2014. Disponível em: https://www.pewresearch.org/religion/2014/11/13/religion-in-latin-america/
[2] ALETEIA. “Cássia Kis: ‘A vida católica é linda'”. 13 de maio de 2022. Disponível em: https://pt.aleteia.org/2022/05/13/cassia-kis-a-vida-catolica-e-linda/
[3] RATZINGER, Card. Joseph. Prefácio da obra “A Reforma da Liturgia Romana” de Mons. Klaus Gamber.
[4] GULLICKSON, D. Thomas. Apostolic Zeal and Contemplation. 11 de dezembro de 2019. Disponível em: https://admontemmyrrhae.blogspot.com/2019/12/apostolic-zeal-and-contemplation.html?m=1
[5] SCHNEIDER, D. Athanasius. ‘Christus vincit: Christ’s triumph over the darkness of the age’. Angelico Press: 2019, página 257.
[6] RORATE CAELI. ‘Papally Approved? Unexpectedly, a New Bishop for the Society of Saint Pius X.’ 20 de janeiro de 2019. Disponível em: https://rorate-caeli.blogspot.com/2019/01/papally-approved-unexpectedly-new.html
[7] SSPX NEWS. ‘An Interview with His Excellency Bishop Vitus Huonder’. 1 de outubro de 2021. Disponível em: https://sspx.org/en/news-events/news/interview-his-excellency-bishop-vitus-huonder-69007
[8] OSTROWKI, Jeff. “‘The Experience After The Council Was So Strong And In Some Cases Violent…’ – Cardinal Burke”. 13 de dezembro de 2014. Disponível em: https://www.ccwatershed.org/2014/12/13/experience-after-council-violent-burke/
[9] “Desejo de eliminar [do futuro Rito em elaboração] cada pedra que pudesse se tornar ainda que só uma sombra de possibilidade de obstáculo ou de desagrado aos irmãos separados” (BUGNINI, Mons. Aniballe. ‘L’Osservatore Romano’, de 11 de março de 1965; Doc. Cath. Nº 1445, de 4/4/1965, coll. 603-6040).
[10] DÉGERT, A. (1910). Ecclesiastical Latin. In The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company. Retrieved May 17, 2022 from New Advent: http://www.newadvent.org/cathen/09019a.htm.
[11] SÁENZ-BADILLOS, Ángel; ELWOLDE, John (1996), A history of the Hebrew language, pp. 170–71.
[12] “Há boas razões para supor que em Jerusalém, como em qualquer outro lugar, a língua litúrgica primitiva era o grego.” Cf. FORTESCUE, A. (1910). Liturgy of Jerusalem. In The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton Company. Retrieved May 17, 2022 from New Advent: http://www.newadvent.org/cathen/08371a.htm.
[13] A partir da segunda metade do século III, a maioria dos cristãos em Roma já falavam latim ao invés de grego. Ainda assim, o pesquisador Basilius J. Groen, professor de liturgia da Universidade de Graz, constata que o grego continuava predominante. Com o pontificado de São Dâmaso, o latim torna-se definitivo. Cf. GROEN, Basilius. The interplay of hebrew, greek and latin in Christian worship during the first millenium: some views, p. 50-51.
[14] Cf. GROEN, Basilius. The interplay of hebrew, greek and latin in Christian worship during the first millenium: some views, p. 50.
[15] Este ponto é mais desenvolvido no meu artigo “Os fundamentos patrísticos do dogma da Imaculada Conceição de Maria”, disponível em: http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/1048-os-fundamentos-patristicos-do-dogma-da-imaculada-conceicao-de-maria/.
[16] PAPA BENTO XIV, ‘Breve Singulari nobis’, 9/2/1749, DzH nº 2566 a 2568.
Uma resposta em “A Missa dos Apóstolos: uma réplica ao blog “O Catequista””
Esses gêmeos são demais!! Parabéns!!!!! \o/ magnífico artigo.