Eis o fruto de tua malícia, uma amargura que te fere o coração.
Jeremias IV, 18
Por João Medeiros
Se há uma expressão pela qual podemos definir o estado atual do neoconservadorismo, é a de que estão “à deriva”. Segundo os dicionários Priberam e Aulete, a emblemática expressão naval “à deriva” significa “sem rumo ou rota”, “desgarrado”, ou ainda “ao sabor dos ventos”; e na confusão semeada pelo Concílio Vaticano II e em sua esteira, não há um termo mais certeiro para o estado em que os neoconservadores se encontram, especialmente neste pontificado divisor de águas do Papa Francisco.
O padre Chad Ripperger, SMD, nos oferece a seguinte definição do termo “neoconservador”, em distinção do antigo “conservador” que buscava conservar a Fé Católica face ao Concílio Vaticano II:
O prefixo “neo” é usado porque eles não são os mesmos que os conservadores em autoridade na Igreja imediatamente antes, durante e depois do Concílio Vaticano II. Os conservadores atuais, ou seja, os neoconservadores, são diferentes dos conservadores daquele tempo na medida em que aqueles procuravam manter atuais as tradições eclesiásticas que foram eventualmente perdidas.[1]
O movimento filosófico e teológico da Nouvelle Theólogie, de sofisticados padres neomodernistas como Karl Rahner, Hans Urs von Balthasar, Henri de Lubac e Joseph Ratzinger, que fora condenado em suas ideias mas reabilitado pelos papas conciliares, dividiu-se entre os modernistas progressistas da revista Consilium, que desejavam continuar a revolução do Vaticano II – nas palavras do insuspeito Cardeal Suenens[2] –, e os modernistas neoconservadores da revista Communio, mais moderados e mitigados, que diziam que a revolução já havia atingido os seus objetivos. Deu-se exatamente como na Revolução Francesa e na Revolução Russa: os revolucionários dividiram-se entre jacobinos e girondinos, vermelhos e brancos, progressistas e conservadores.
O Papa Francisco põe-se a adiantar o itinerário da prensa hegeliana que a todos tolhe desde o famigerado Concílio. Com Traditionis Custodes, a Tradição Católica, que estava como que num regime de prisão condicional ou domiciliar desde o Summorum Pontificum, a carta aos bispos que lhe acompanhou, ambos de 2007, e sua instrução de aplicação Universae Ecclesiae, datada de 2011, retornou ao calabouço do modernismo conciliar com seus guardiões que não guardam, mas, pelo contrário, preferem ser verdugos. Bento XVI, que iludiu a tantos – e me incluo nestes –, mesmo àqueles com alto grau de conhecimento doutrinal, foi suficientemente claro nos seus documentos sobre liturgia – das raras vezes de claridade nos pontificados conciliares – ao denominar o rito romano tradicional como “forma extraordinária” (e “extraordinário” também se traduz como algo de rara ocasião). Foi especialmente claro na instrução de 2011, onde disse que a permissão (ou concessão, como se queira) fora dada pensando nos grupos “formados no espírito das formas litúrgicas precedentes ao Concílio”, publicada pela hoje extinta Comissão Ecclesia Dei sob a sua permissão e com a assinatura do Cardeal Levada. A liturgia romana tradicional não passou de uma concessão dada pensando em um mero apego de sacerdotes e leigos que viveram aquela liturgia, de validade limitada ao fim da vida dos “apegados”, e também como meio de fragmentar a luta dos católicos tradicionais e sua unidade.
Agora, o Papa Francisco é claro ao findar tal concessão, pois notou, como os modernistas conciliares, que o “espírito das formas litúrgicas precedentes ao Concílio” é um espírito fundamentalmente católico e incompatível com a realidade e aplicabilidade do modernismo conciliar. É simplesmente impossível que o culto a Deus e o culto ao homem – Paulo VI dixit! – coexistam pacificamente, e é utópico pensar que podem conviver juntos. Os cultores do homem sempre tentarão destruir a Cidade de Deus, pondo sua fumaça fétida para sufocar aqueles que desejam defendê-la. É a fumaça de Satanás infiltrada no templo de Deus[3].
O modernismo neoconservador divide-se e, à deriva, não sabe se vai ao progressismo ou se finge tradicionalismo. Alguns ainda se arrastam na lama enquanto tentam salvar a “hermenêutica da continuidade” (que não passou de um discurso sugestivo, um pitaco cardinalício e sem valor de magistério, data venia ao cardeal Ratzinger); outros tantos, e estes são maioria, percebem que não há uma mera “hermenêutica da ruptura”, mas uma ruptura verdadeira do Concílio Vaticano II com a Tradição Católica, e que esta ruptura é independente de quaisquer interpretações terceirizadas. E o que muda é a tomada de posição de cada um ao descobrir esta verdade tão certeira já há muito percebida pelo Cardeal Suenens, campeão da heterodoxia entre progressistas e neoconservadores:
O Concílio Vaticano II marcou o fim de uma era, ou mesmo de muitas eras, dependendo da perspectiva histórica de quem vê. Trouxe um fim à era constantiniana, à era da “Cristandade” no sentido medieval, à era da Contrarreforma e à era do Vaticano I. Numa referência àquele passado, o Vaticano II marca um ponto de virada na história da Igreja.[4]
A deriva neoconservadora é realmente patente; sem rota, depois de tanto fazer na tentativa de validar teses anticatólicas – como fazer do Reinado de Cristo algo meramente escatológico –, a transformação ou redução da Fé Católica, sempre monárquica e hierárquica, ao “magistério” do sensus fidelium da colegialidade e da sinolidade, enfrentam raios e trovões como Dom Quixote aos moinhos de vento. O neoconservadorismo é como uma fragata cujos mastros e velas foram voluntariamente retirados a flutuar ao gosto dos movimentos oceânicos. Todavia, com ou sem mudança de postura entre os escudeiros conciliares, subsiste neles a idiossincrática malícia que sempre lhes foi particular.
É a malícia modernista que, no Concílio, fazia verdadeiro corte e costura de documentos magisteriais em prol de suas ideias modernistas, como o bispo belga Dom Émile-Joseph de Smedt a falsificar o sentido de encíclicas papais, mesmo aquelas claramente definitivas e dogmáticas como a Quanta Cura de Pio IX, a fim de argumentar pela liberdade religiosa[5] com um pretenso “desenvolvimento doutrinal em continuidade” que, em verdade, é o velho modernismo evolucionista condenado na Pascendi. É a malícia continuada ainda hoje por aqueles que buscam conciliar Amoris Laetitia com a doutrina católica acerca do matrimônio. É a obstinação de quem ama o mundo e quer amar a Igreja, a desordem de quem “ama o mundo apaixonadamente”. O neoconservador não passa de um modernista envergonhado. E é por sua vergonha que trabalha como um alfaiate esquizofrênico, cheio de cortes, recortes e retalhos para produzir um tecido fino da sofística.
Com Bento XVI, os acólitos conciliares repetem que “o Concílio Vaticano II não foi um super dogma”[6], mas em seguida, repetem com Paulo VI que “o Segundo Concílio do Vaticano é mais importante do que o Concílio de Niceia”[7]. Diante de tamanha confusão e contradição para tentar provar a quadratura do círculo, o que lhes resta é recorrer a velhos expedientes comuns frente aos católicos tradicionais: “cisma!”, “desobediência!”, “excomungado!”, “vocês não rezam!”, num incessante deblaterar que precede a convulsão, não sem antes anestesiar a própria consciência e ignorar ou atacar a razão, dom de Deus, numa lógica circular de que o Vaticano II “foi, justamente, o Concílio de maior riqueza doutrinal ([pois] os textos do Concílio formam um livro inteiro)”[8]. Tamanho cálculo é de fazer inveja a qualquer matemático.
E enquanto os neoconservadores padecem de seus próprios males e amargam no coração uma consciência entorpecida, os católicos tradicionais seguimos fiéis de rosário em mãos na certeza de que sem a verdadeira Fé e a Missa Romana Tradicional – que contrariamente à outra, é inequivocamente católica –, este duplo fronte de combate que nos lega a Tradição Apostólica da Igreja, nada realmente frutificará. State et tenete traditiones, ficai firmes e guardai as tradições. “Traze sempre na boca as palavras deste livro da lei; medita-o dia e noite, cuidando de fazer tudo o que nele está escrito; assim prosperarás em teus caminhos e serás bem-sucedido. Isto é uma ordem: sê firme e corajoso. Não te atemorizes, não tenhas medo, porque o Senhor está contigo em qualquer parte para onde fores” (Josué I, 8-9).
[1] RIPPERGER, Chad. Catolicismo conservador vs. Catolicismo tradicional: distinções com diferenças filosóficas. The Latin Mass Magazine, Saddle River, edição da primavera de 2001; Centro Cultural Ávila, Belém, outubro de 2020, tradução de Danilo Rehem e João Medeiros.
[2] SUENENS, Leo Jozef. Cardinal Leon-Joseph Suenens; Helped Modernize Catholic Church. Los Angeles Times, Los Angeles, 9 de maio de 1996.
[3] PAULO VI, Homilia do IX Aniversário da Coroação de Sua Santidade, 29 de junho de 1972.
[4] SUENENS, Leo-Joseph, Co-Responsability: Dominating Idea of the Council and its Pastoral Consequences. IN: Theology of Renewal, vol. II. Montreal: Palm Publishers, 1968, p. 7.
[5] KLOPPENBURG, Frei Boaventura. Concílio Vaticano II, vol. III: segunda sessão (setembro-dezembro 1963). Petrópolis: Vozes, 1964, p. 320.
[6] RATZINGER, Joseph. Alocução aos Bispos do Chile, 13 de julho de 1988. Comunhão e Libertação, CI, ano IV, n° 24, 1988, p. 56.
[7] Documentation Catholique, 58 (1976), p. 34.
[8] WILK, Dom João. Concílio Vaticano II – respostas a um católico. Palavra do Bispo, Anápolis, 4 de abril de 2008.
2 respostas em “A deriva neoconservadora”
Esclarecedor!
Temos que resgatar o conhecimento do magistério da Santa Igreja católica , está a nossa disposição, melhorar enquanto fiéis, crer na sã doutrina , nos dogmas, defender a fé e buscar a salvação de nossas almas . A crise é complexa exige conhecimento, temos que melhor conhecer para resistir.