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A celebração da inocência: “Playtime” (1967) de Jacques Tati

Deixai as crianças e não as impeçais de vir a mim, pois delas é o Reino dos Céus.

Mateus, 19-14


Por Matheus Oliveira

Mestre da comédia francesa e mundial, o ator, diretor, roteirista e produtor Jacque Tati (1907-1982) nos deixou como legado não só uma porção de gags, mas também uma fina sátira ao mundo moderno. Dentre os títulos da breve filmografia de Tati (em vinte e seis anos, apenas seis longas-metragens), “Playtime” (1967) é, sem sombra de dúvidas, a sua máxima realização artística. Neste ensaio, pretendo desenvolver uma possível leitura desta obra-prima do cinema.  

Tati trazia consigo a marca do gênio: a fome obstinada de perfeição, o controle meticuloso de cada detalhe de sua obra. Não raro acusavam-no de “louco” e “megalomaníaco”. Para realizar “Playtime”, por exemplo, Tati construiu uma mini-cidade nos subúrbios de Paris, a Tativille, e demorou seis anos para terminar o filme, elevando os custos da produção a valores exorbitantes. Mas tal como acontece com os gênios, o perfeccionismo cobrou o seu preço: “Playtime” foi um fracasso seminal de bilheteria, cujo prejuízo levou Tati à falência. Em 1982, Tati morreu endividado, solitário, sem conseguir adquirir fundos para um novo projeto de filme, que se chamaria “Confusion”.

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Figura inconfundível, Mr. Hulot ostenta o seu costumaz cachimbo.

Quatro dos filmes de Tati, dentre eles “Playtime”, têm como protagonista o personagem Monsieur Hulot, interpretado pelo próprio Tati (imagem acima), hoje incorporado ao imaginário do público como ícone do humor físico, corporal, tal como os personagens dos filmes de Charles Chaplin e Buster Keaton.

Alto, esguio, desengonçado, andar trôpego, como uma criança num corpo de adulto, Hulot é um amável e generoso senhor incapaz de se ajustar à vida moderna. Pouco sabemos de sua origem. Ele aparece pela primeira vez em “Les Vacances de monsieur Hulot” (“As Férias do Sr. Hulot”) de 1954, e conhecemos um pouco mais de sua família e de seu bairro em “Mon Oncle” (“Meu Tio”) de 1958 — este premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1959. Depois de “Playtime” (1967), Mr. Hulot volta para sua última aparição em “Trafic” (cujo título no Brasil é o extravagante “As Aventuras do Sr. Hulot no Tráfego Louco”) de 1971. No entanto, embora seja um personagem aparentemente plano, bidimensional, Mr. Hulot tem o poder de reproduzir nos seus pequenos gestos uma serena resistência ao isolamento maciço das grandes metrópoles.

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O labirinto de escritórios.

Em “Playtime”, Tati retrata um mundo que, sob pretexto de ser funcional, eficiente e tecnológico, revela-se padronizado, feio e desumanizador. De início, o título sugestivo — Tempo de Diversão — parece contrastar com a austeridade da Paris de Tati. O figurino cinzento, os ambientes hiper-higienizados, a marcha retilínea das pessoas, os planos estáticos e abertos apresentam ao espectador um mundo onde tudo parece uniforme e impessoal. Nesta desencantada Paris, onde os célebres pontos turísticos são vistos apenas pelo reflexo das vidraças, o simples Mr. Hulot surge com seu invisível encanto.

Chamado por André Bazin de “o anjo excêntrico” (l’ange hurluberlu), Hulot tem as qualidades de um homem ordinário, e talvez por isso ele nos pareça o mais humano entre os homens. Hulot manifesta sempre um espírito de serviço, de caridade. Mesmo atrapalhado, ele não quer atrapalhar ninguém. É notável que em “Playtime” inexista o uso do plano fechado, o close-up, tradicional recurso de individualização, subjetivação. O gênero da comédia costuma autorizar essa escassez de apelo psicológico, mas a preferência por planos que não acentuam a proximidade física do protagonista vai muito além da mera rejeição de uma proposta dramática. O plano fechado acentua os contornos interiores do indivíduo; acentuaria, portanto, o Mr. Hulot. Mas o personagem Hulot não foi concebido para chamar atenção para si, como o protagonista de um romance moderno. Hulot se importa muito pouco consigo. Na maior parte da obra, é o próximo o destinatário das ações de Hulot. Seria possível dizer que o modesto Mr. Hulot não se sentiria à vontade em planos-fechados. Daí que a escolha de Tati por essa abordagem visual revela profunda coerência com o tema – a esterilidade da arquitetura moderna – e com as qualidades do personagem principal.

E o enredo? Qual é a estrutura das ações de “Playtime”? Não é uma estrutura tradicional. Basicamente, acompanhamos duas personagens: o próprio Mr. Hulot e Bárbara, uma turista americana em visita a Paris. Seis são os ambientes nos quais suas trajetórias se desenvolvem: o aeroporto, o labirinto de escritórios, o apartamento-vitrine, a exposição de inovações tecnológicas, o Royal Garden e o carrossel urbano. Entre encontros e desencontros, os destinos de Hulot e Bárbara cruzam-se em muitos momentos — meu preferido se dá quando Hulot ouve a música do rádio de Bárbara, sendo que o rádio tem o formato de um edifício em miniatura —, mas eles só se conhecem mesmo na parte final do filme com um desfecho singular.

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O fotógrafo exausto por tirar sempre as mesmas fotos, e as cidades ao redor do mundo que têm o mesmo estilo de edifício.

Embora audaciosa no seu arranjo formal, a crítica de “Playtime” não parece pretensiosa ou afetada. O tom satírico do filme é sempre leve, benevolente, na margem do infantil. Tati parodia a sociedade contemporânea com uma pureza de menino; as caricaturas por ele desenhadas não são um escárnio ácido e contestador, mas reiteram o bom-humor de um coração singelo.

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A primeira gag.

Além do estilo visual primoroso, Tati explora com genialidade o design sonoro, consagrando o casamento entre imagem e som no cinema. De fato, o diretor francês tinha um cuidado artesanal com a acústica dos seus filmes. Não à toa ele editava o som separadamente. Ao longo de “Playtime”, as sugestões sonoras desempenham o papel de guia do espectador — um guia trocista que pode muito bem nos pregar uma peça: pensemos na cena inicial (imagem acima), onde o som de choro de bebê parece vir dos colos de uma enfermeira de hospital. Mas a enfermeira é, na verdade, uma faxineira que trabalha não num hospital, mas num aeroporto. E o choro do bebê não vem de seu colo, mas do carrinho em frente ao casal no primeiro plano. Não se trata, no entanto, de uma pilhéria gratuita. Pois os espaços urbanos também nos confundem com sua uniformidade totalizadora, sem identidade, de tal modo que as instalações de um aeroporto nos lembram um hospital e vice-versa. 

O uso do som em “Playtime” também modifica a importância que normalmente atribuímos aos diálogos no cinema. Se diálogos inundam os blockbusters de Hollwood, cheios de expositions que violentam a inteligência do espectador, o papel do som em “Playtime” é registrar “o sussurro sinfônico da vida civil” (Manuel Bandeira). Tati captura a sinfonia das ruas, dos pedestres, dos carros, dos gadgets, das máquinas. Não raro os diálogos são ininteligíveis, totalmente dispensáveis para a compreensão do enredo, como na cena da imagem abaixo.

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Dez minutos quase sem diálogos, onde só ouvimos o som das ruas. O amigo bem-sucedido de Hulot lhe apresenta o interior ultramoderno de seu apartamento-vitrine.

A obra de Tati é um convite à inteligência. Em verdade, “Playtime” é um filme exigente, desses que assistir uma só vez nos revela apenas a superfície da película, a sua estrutura geral e alguns sub-tramas. O crítico Noel Burch chegou afirmar que “o filme precisa ser visto não apenas várias vezes, mas também de vários pontos diferentes para ser apreciado plenamente”. Que o leitor não se sinta desencorajado a se aventurar no mundo de Tati, mas enxergue na obra do diretor francês as possibilidades técnicas e estéticas do cinema aprimoradas com maestria. É um filme que nos ensina a amar a sétima arte.

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A algazarra coletiva no restaurante.

Pensemos na longa cena no Royal Garden (imagem acima). Com mais de quarenta minutos de duração, ela reforça o impulso criador que orienta a obra de Tati. Os convidados aparecem cheios de pose, em movimentos calculados, mas aos poucos a coreografia vai dando lugar à dança desgovernada. Montada a ordem das aparências sociais, Tati mostra que seu objetivo é desmontá-la, bagunçá-la, revelar-lhe a felicidade oculta, genuinamente humana, que se adapta à oscilação das circunstâncias. A alegria caótica do improviso — ao som da música do improviso por excelência: o jazz — como que humaniza os personagens, liberta-os de sua máscara social. Mais que isso: esse próprio caos é deliberado. Tati tem controle sobre cada centímetro da tela, num rigor matemático das ações, ao mesmo tempo em que nos mostra o descontrole do riso e da festa.

Esta cena esconde uma multidão de piadas visuais — como o garçom que enche o copo das turistas americanas com champanhe, mas que parece mesmo regar as flores de seus chapéus; ou o andar cambaleante dos bêbados em oposição aos passos retilíneos da abertura do filme; ou o gerente que confunde cacos de vidro com gelo; etc. Tati demonstra um domínio soberano da mise-en-scène, povoando a tela com tantos detalhes que seria necessário um longo artigo para discerni-los um a um.

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O carrossel urbano.

Nos momentos finais de “Playtime”, um congestionamento transfigura-se num carrossel urbano, como se ocorresse um milagre. Trata-se de uma composição primorosa de sons, cores e imagens em movimento, expressão máxima da poesia audiovisual tatiesca. No parque de diversões improvisado no trânsito, o parquímetro é o que liga o carrossel, as crianças se divertem com brinquedos e doces, o reflexo da janela não mais paralisa, mas inclina as passageiras do ônibus, como numa montanha-russa. O colorido desta cena opõe-se à austeridade cinzenta da cidade, como se um arranjo de flores brotasse entre vidros e aço. E o amável Mr. Hulot presenteia Bárbara com um véu e um lírio-do-vale que rima com os postes de luz. É um momento mágico, de uma plasticidade tocante.

Como seriam os filmes de Tati se ele ainda estivesse vivo? Não faltariam detalhes da vida urbana para converter em gags. A fixação nos smartphones, a ilusão das redes sociais, as restrições contraditórias da pandemia, a tecnologia decorativa dos nossos espaços… Tudo seria alvo do olhar satírico e criador de Jacques Tati. Um olhar de quem transforma a fantasia numa extensão da vida real. Conta-se que o diretor francês recebeu cartas de crianças nas quais elas diziam que, após saírem do cinema numa sessão de “Playtime”, era como se o filme continuasse nas ruas. Numa época onde vigora o “realismo” cínico e apelativo, voltemos a Tati para lembrar que a sétima arte, com toda sua proeza formal e estética, um dia celebrou o lirismo da inocência humana.

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Um padre com uma auréola de Santo…
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…e, em seguida, a Basílica do Sagrado Coração refletida no vidro.

 

2 respostas em “A celebração da inocência: “Playtime” (1967) de Jacques Tati”

Esse texto é uma pérola no meio do mar que abrange tanto volume de elogios à ostentação de filmes tolos e supérfluos.

O caro Matheus conseguiu, com louvor, motivar a qualquer leitor a vontade de ver a obra de Tati. Que é um dos maiores diretores de cinema da história.

A qualidade da escrita e ótimas tomadas de decisão de pinçar alguns pontos interessantes, sem entregar o longa, revela a destreza de bom crítico, parabéns Matheus.

Espero já pela próxima análise.

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