por André Abdelnor Sampaio
Aos meus afilhados.
Quando se pede por intercessão de Nossa Senhora as Graças relativas cada Mistério do Rosário, não se espera que ocorra uma mágica ao fim de cada dezena, mas se está a pedir luzes para que, ao meditar no Mistério anunciado, encontre-se modos concretos de vivê-lo ao refletir e meditar como Nossa Senhora viveu cada Mistério, ao aprofundar segundo as descrições da Sagrada Escritura, como ela reagia diante daqueles eventos, qual era sua disposição, qual a relação que ela tinha diante de Deus naquele momento, como Deus a via, como ela via Deus e o que Ele pedia para ela naquela hora, naquela situação, como ela realizava e coisas semelhantes. Deste modo a oração do terço produzirá uma influência causal durável em nossa vida pela crescente assimilação das virtudes que encerram a meditação dos Seus Mistérios sob o auxílio da Graça. O Santo Rosário move a adentrar na alma de Maria Santíssima e de Seu Divino Filho feito Homem, o Fruto bendito de seu puríssimo e imaculado ventre, e secundariamente adentrar também nas disposições das pessoas relacionadas a eles em cada Mistério (Santa Isabel e São João Batista na Visitação; Santa Maria Madalena na Ressurreição; Os Apóstolos na Ascensão e em Pentecostes…). O terço bem rezado enquanto oração vocal e mental confere luzes para saber o que Deus quer para nós, na nossa vida, que disposições Ele quer que nós tenhamos para com Ele, para com as pessoas, para com as coisas, através da meditação do modelo supremo do amor perfeitíssimo a Jesus Cristo: A Santíssima Virgem Maria.
Depois da Santa Missa e do Santo Rosário, a Via-Sacra ou Via-Crúcis é a devoção católica por excelência. Foi a própria Mãe de Deus que iniciou essa devoção ao percorrer o trajeto de Seu Filho para redimir o gênero humano. A Via Sacra com as suas estações contém inesgotável fonte de ensinamentos sobre a Paixão e a Morte do Verbo Divino Encarnado e sua relação com o itinerário da vida católica.
É uma devoção que de modo bem palpável, detalhado e profundo nos move a participar das mesmas disposições de Jesus Cristo, fonte de toda vida sobrenatural. Não apenas as palavras de Jesus Cristo constituem ensinamentos, mas Seus atos também, pois por serem atos do Verbo Divino feito Homem, possuem dimensão redentora e constituem o modelo exemplar absolutamente perfeito para ser imitado de modo análogo na vida do cristão, sobretudo quanto às disposições.
Se o Filho é, com o Pai e o Espírito Santo, causa exemplar da criação, e as criaturas intelectuais foram criadas à imagem e semelhança de Deus, ao Se encarnar, a Natureza Humana de Cristo opera em perfeitíssima unidade moral com a Sua natureza divina, ainda que haja duas operações em Cristo (a operação proveniente da Natureza Humana e a proveniente da Natureza Divina). Dessa forma, os atos, ensinamentos e disposições de Cristo são causa exemplar e modelo de vida sobrenatural (sendo o Espírito Santo, o Modelador) dignos da suprema devoção, participando de modo eminentíssimo e inigualável à Sua Santíssima Mãe, a Virgem Maria, passando depois por São José e os demais Santos. Estes são Ramos que participam da mesma seiva vital da Videira, Jesus Cristo.
Então, com relação à Via Sacra, vemos nos atos de Jesus Cristo e de Maria Santíssima, modelos supremos de santidade (Santa Maria participa do modo mais perfeito possível a uma criatura da Santidade de Jesus Cristo, seu Filho).
Sempre é possível crescer e aprofundar na consideração meditativa das Estações da Via Sacra. As diversas meditações feitas por diversos Santos e pelos legítimos pastores possuem esta finalidade: elucidar algumas das incontáveis verdades sobrenaturais presentes em cada Estação para mover a alma em afetos que a faça unir à Paixão e Morte de Jesus Cristo manifestados em resoluções concretas de emenda de vida e decisões de extirpar algum ou alguns vícios, erradicar alguma falta ou várias delas, e de crescer em alguma virtude relacionada com a Estação meditada.
Não é nosso intento, nem nos compete propor tais exercícios ou discorrer sobre o modo de fazê-los. O que nos cabe aqui é elucidar que Cristo é o próprio Deus feito Homem sendo visto, e portanto, possível de ser imitado naquilo que há de imitável pelos homens (repita-se: ao menos quanto a algo de Suas disposições) sob o auxílio da Graça do Espírito Santo. Apresentamos aqui alguns dos principais ensinamentos de cada estação sem jamais pretender exaurir todo o seu conteúdo, o que seria impossível.
Na primeira Estação temos a condenação de Cristo. Nela o cristão aprende, entre outras coisas, sobre a resignação dócil que deve ter ao ser perseguido, ao sofrer injustiças e ser condenado aos olhos do mundo por confessar a Fé em Cristo e buscar (por atos e palavras) fazer a vontade de Deus, venha o que vier, custe o que custar. Sem ceder em um único milímetro na defesa da Santa Fé.
O Senhor de todo o universo se deixou atar, algemar, para propiciar a libertação do gênero humano do cativeiro do demônio, da morte eterna e do pecado. Ao tomar a Cruz nos ombros, Cristo nos ensina por Seu exemplo e nos dá a Graça para assumir nossos deveres cotidianos sem hesitar, com fortaleza, prontidão e entrega; a tomar a nossa Cruz diária sem murmurar, ser verdadeira vítima de Amor, mas sem vitimismo; a negar a nós mesmos como condição essencial para segui-Lo.
As três quedas físicas de Cristo ensinam uma multidão de coisas. Indicam sobretudo que no caminho do cristão haverá quedas morais (o que jamais ocorreu com Cristo, Cordeiro Imaculado que tolhe todo pecado) e que o cristão não deve se surpreender, nem ser presunçoso, muito menos se desesperar com suas quedas, fraquezas e limitações, mas nutrir o mesmo espírito de Jesus Cristo diante de sua queda física no caminho do Calvário: erguer-se prontamente e ir adiante para fazer até o fim a Vontade sumamente amabilíssima do Pai. Não estacionar na queda, chafurdando na lama do pecado, mas levantar por amor de Deus.
No cristão não deve se instalar a angústia soberba por não ter uma vida “ilibada” conforme seu próprio capricho, pois se até o Cordeiro Imaculado caiu três vezes (apenas fisicamente, nunca moralmente), nós, pobres pecadores, temos quedas morais, desordens, defeitos dominantes a extirpar, faltas a reparar, ranhuras e imperfeições a combater, e elas não devem constituir causa de desânimo, senão que as próprias faltas devem ser aproveitadas para que se manifeste em nós a misericórdia divina que vai ao socorro de nossas misérias e as ultrapassa com Sua Graça, que superabunda diante do pecado.
A ajuda de Simão de Cirene nos ensina a discernir a Cruz de Cristo das falsas cruzes que não devemos tomar. Ensina-nos também que não devemos recusar os legítimos auxílios e recursos humanos postos ao nosso alcance para o nosso progresso espiritual. A Graça supõe a natureza e a eleva, sem contrariá-la ou tolhê-la, de modo que não se deve incorrer no naturalismo que rejeita o influxo principal da Graça, nem em sobrenaturalismo (que é um desvio da verdadeira visão sobrenatural) que rejeita o bom uso dos recursos, auxílios e indústrias humanas, sobretudo no que se refere à saúde física, psicológica que se ordenam e dispõem para saúde espiritual dada pela Graça, sem a qual a saúde do homem se encontra realmente amputada, do mesmo modo que as ciências da ética, política, economia se encontram amputadas sem o influxo da Teologia Sagrada, e seu juízo ao modo negativo sobre as ciências inferiores.
Rejeitar os legítimos auxílios e recursos humanos manifesta um claro sinal de orgulho. É tentar a Deus por rejeitar as causas segundas, e buscar uma Cruz que não é a do próprio Cristo (é a Cruz de Cristo que nos salva, não a dos ladrões). Não é o discípulo maior que o Mestre, então não devemos rejeitar o cirineu que aparece em nossa vida para nos auxiliar a levar nossa Cruz da melhor maneira possível. Também nós por vezes devemos exercer o papel de cirineu, agindo como suporte para que os demais levem sua Cruz de modo proficiente, com maior entrega e determinação.
O encontro de Jesus Cristo com Sua Mãe Santíssima ensina ao cristão que Maria é o verdadeiro consolo na vida do católico e isto não deve ser compreendido de modo sentimentalista, mas segundo as verdades de Fé a respeito da Mãe de Deus. Ela é o refúgio dos pecadores e possui um amor inexaurível e clementíssimo; ela é a advogada dos homens diante de Deus que por sua onipotência suplicante “arranca” do Altíssimo copiosas graças para os que buscam ser seus verdadeiros devotos.
Esta estação nos ensina fundamentalmente que o pecado nunca é a solução para as aflições e tormentos, nunca irá consolar verdadeiramente ninguém, mas a Santíssima Virgem irá, pois uma boa mãe sempre quer o melhor aos seus filhos. E a Mãe de Deus e de todo o gênero humano sempre quer o melhor para que seus filhos sirvam da melhor maneira possível o Seu Divino Filho, e jamais desampara aqueles que a ela recorrem buscando seu indispensável auxílio para viver em Graça de Deus.
Ela, a Imaculada, é o caminho seguro para seguir o Caminho, a Verdade e a Vida, e assim como Cristo a caminho do Calvário a encontrou, todo aquele que quer seguir a Cristo deve necessariamente ir até a Santíssima Virgem Maria, dispensadora, ecônoma e tesoureira de todas as graças de Deus.
Veronica enxugando a Sagrada face de Cristo, deixando-A impressa no pano, remete-nos a enxugar e limpar piedosamente o rosto de Nosso Senhor pela expiação e penitência dos nossos pecados que desfiguraram a Sagrada Face do Verbo Encarnado; remete-nos a cultivar habitualmente o espírito de reparação às ofensas, ultrajes e ingratidões que nós e os demais cometem contra Cristo. Nesse espírito de penitência e reparação (que deve ser a condição habitual do cristão nesta vida) acompanhado necessariamente de um vivo horror e abominação do pecado (decisivamente do pecado mortal e progressivamente do pecado venial deliberado), podemos também deixar menos desfigurada a Sua Sagrada Face impressa em nossa alma desde o Batismo (e desfigurada por nossos pecados), pagando Amor com Amor, e Amor de Reparação.
O consolo às filhas de Jerusalém nos ensina a chorar pelos próprios pecados, a ter uma eficaz e profunda contrição sobrenatural, pois são os nossos pecados que levaram Nosso Senhor a morrer na Cruz, e Cristo pensou em cada um de nós e em cada um de nossos pecados desde a agonia no Getsêmani, e principalmente em Sua Paixão. Uma exortação à dor de amor, por não corresponder ao tanto de Amor recebido de Deus.
O despojamento das vestes de Nosso Senhor enfatiza a humilhação profunda que Cristo aceitou passar. Além de ser cruelmente açoitado, esbofeteado e cuspido, tendo seu corpo dilacerado pelas flagelações, Cristo despoja-se de sua túnica sem costura, que não sem imensa dor se desencostou de suas incontáveis feridas deixando exposta Sua Carne rasgada, e assim, Ele exorta o cristão a abominar os prazeres desordenados da sensualidade crucificando a carne com suas paixões e concupiscências pela mortificação cristã; também exorta o cristão a tomar ciência de que, rigorosamente falando, apenas Deus é o ofendido, e que o cristão tem de enfrentar todo escárnio e humilhação sofridos por amor de Cristo e nutrir um desprendimento dos bens terrenos e o desprezo pelas vaidades e prestígios do mundo, para nutrir um ardente anseio pelo Céu.
Ao ser pregado na Cruz, ensina-nos que todos os nossos empreendimentos e projetos (as mãos remetem à regência, governo, direcionamento/guiamento) devem sempre estar condicionados à Vontade de Deus, sem jamais buscar condicionar a vontade de Deus aos nossos interesses. E isto em todo estado de vida (matrimonial, religioso, sacerdotal).
O católico não faz projetos pessoais de vida que não estejam implícita ou explicitamente relacionados com a vontade de Deus (que se expressa primeiramente nos Mandamentos, e de modo particular nos deveres de estado, nas circunstâncias concretas em que há a ocasião de servir a Deus e ao próximo, por amor de Deus segundo a ordem da Caridade). Isso implica a renúncia dos caprichos, retificação de intenção, ajuste das disposições, desapego de toda estima desordenada por qualquer bem criado, incluindo a vontade própria, se ela não estiver congruente com a Vontade de Deus na nossa vida.
A liberdade de espírito que somente o católico pode e deve almejar é de manter-se firme e sereno em querer que o Nome de Deus seja santificado, isto é, que se busque Sua Glória, manifestando Sua Bondade em todas as coisas; que Seu Reino venha e triunfe pelo império de Sua Graça que habita em nós comunicada pela Igreja; e que Sua Vontade seja feita na nossa vida, como se pede nos Três Primeiros pedidos do Pai-Nosso. Se isto se mantém, o resto não deve perturbar ou tirar a Paz profunda da alma em estado de amizade com Deus, ainda que por outro ângulo nos cause sofrimento e certa aflição (pois ninguém que vive neste mundo é indiferente ao seu destino imediato, nem Cristo o foi, como mostra Sua agonia no Getsêmani). Todos os demais anseios e projetos alheios a estes Três Pedidos são vãos e devem ser crucificados em vistas destes três anseios dominantes e permanentes que devem nutrir a alma cristã em todos os seus empreendimentos, de modo crescente.
Isso muitas vezes significa se abster de praticar ações que são em si mesmas boas em determinado momento ou ocasião, mas que não são do modo como Deus dispôs naquele momento, Deus quer que nos unamos a Ele do modo como Ele dispõe, e não do modo como nós achamos que Ele deve dispor para nós, o que indicaria ainda certo apego à própria vontade, querendo que ela seja feita usando Deus como “meio”, e não que a vontade de Deus seja feita em nós; implica em jamais condicionar a própria conversão a um momento ou fato específico, adiando para um evento particular, pois Deus quer que nos emendemos hoje e agora, assim que a consciência indicar.
Os pés crucificados remetem ao caminho terreno do católico, que deve se lembrar que esta vida não é o âmbito supremo das realizações humanas, e que ele deve portanto, perder as ilusões sobre ela, crucificar seus passos, seus caminhos, não se deixando seduzir pelas falsas promessas de felicidade perfeita neste mundo, em nenhuma criatura, que deve purificar seus afetos terrenos constantemente, recorrer a Deus aceitando com paciência as tribulações o que não se pode mudar, e enfrentando com espírito combativo as adversidades da jornada que se pode mudar se for para que se cumpra a Vontade de Deus na própria vida em primeiro lugar.
É próprio do amor verdadeiro repelir tudo o que é contrário à sua realização efetiva. Quem quer um bem tem um proporcional e ordenado ódio a tudo o que corrói ou obstrui a posse e o cultivo deste bem. E nada é mais contrário ao amor de Deus que o pecado que expulsa a vida de Deus na alma, de modo que a luta contra o pecado e o cultivo da virtude são claras e necessárias manifestações de amor a Deus. O pecado foi a causa da Paixão de Cristo, e se amamos a Cristo, não queremos desperdiçar o Seu Preciosíssimo Sangue de valor infinito derramado para reparar a ofensa ao Pai e remir nossas culpas, e portanto, como consequência direta do amor a Deus, o cristão deve repelir o pecado preferindo sofrer todos os males do que ofender a Deus e buscar situar sua alma o mais distante possível de pecar pelo cultivo das virtudes cristãs.
A vida neste mundo é um combate, uma milícia. É impossível amar a Deus desprovido de uma luta ascética, do combate espiritual. O caminho do católico deve sempre levar a marca desse combate contra o pecado (que insere um bem criado no lugar do Criador), e portanto, ele deve buscar se purificar de suas afeições desordenadas a todas as coisas criadas, se elas impedem ou debilitam seu serviço a Deus. É por isto também que Cristo lava os pés dos discípulos, pois enquanto vivemos neste mundo estamos sempre sujeitos às más inclinações e devemos purificar e ajustar constantemente as afeições terrenas, buscando as coisas daqui da terra somente enquanto elas nos servem para alcançar as coisas do Céu, sabendo usá-las bem e sem prurido quando nos aproximam de Deus e sabendo se desfazer delas sem remordimento ou apego quando elas nos afastam de Deus. Possuir as coisas como se não as possuísse, viver neste mundo sem ser do mundo é condição indispensável para ter parte com Jesus Cristo.
Cristo nos amou enquanto ainda éramos Seus inimigos, rogou pelos transgressores, que são os mais necessitados mostrando que a Graça atual vem até nós para que nos arrependamos de nossos pecados, e isto se manifesta de modo claro na Cruz, e expressamente manifesta esta verdade quando perdoa Seus algozes na Cruz, dizendo “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem”. A ignorância por parte dos algozes sobre Cristo ser o Messias certamente era voluntária, concomitante e não precedente, pois teriam chances de reconhecê-Lo por Seus inúmeros milagres, por não haver n’Ele nenhum resquício de mácula, sendo Ele a inocência suprema, mas mesmo esta ignorância indesculpável Cristo buscou atenuar, mostrando a disposição de perdoar por Sua Caridade infinita. Mesmo os que se condenam ao morrer sem arrependimento têm penas ainda aquém do que realmente merecem.
Cristo satisfez condignamente ao Pai pelo ultraje dos homens. O Sacrifício do Deus-Homem é justiça perfeitíssima, que verteu a nós além do que merecemos por Justiça. Isso é o perdão. Enfatiza também o caráter cegante do pecado, que turva a inteligência, deixando-a embotada, em trevas. Perdoou o mais grave pecado que se poderia cometer: o deicídio. O que enfatiza que Deus pode perdoar qualquer pecado, desde que haja verdadeiro arrependimento do penitente. Deus suplicou por Seus algozes, e muitos se converteram logo após a Morte cruentíssima de Nosso Senhor reconhecendo-Lhe como Filho de Deus, e muitos outros haviam de se arrepender pela pregação dos Apóstolos, e se não se converteram todos, foi porque a súplica de Cristo, diz São Roberto Belarmino, era conforme a Sabedoria e Vontade de Deus que predestina alguns à Vida eterna, enquanto outros, não por predestinação divina, mas em razão dos seus pecados, condenam-se.
Cristo Reina pelo Madeiro, triunfa sobre o pecado e a morte eterna, triunfa sobre o poder do demônio, redimindo o gênero humano não pelo poder manifesto de Sua Divindade, mas pela debilidade de Sua Humanidade.
O bom ladrão reconheceu a Realeza de Cristo naquele estado completamente desfigurado, onde a Divindade de Cristo era irreconhecível a olhos humanos, estando oculta diante da crueza de Sua Paixão. Tremendo ato de Fé e de Esperança do bom ladrão: reconhece que Cristo é verdadeiro Rei, dirigindo-se a Ele enquanto onipotente e misericordioso, sabendo que pode nos salvar, que nos alcança com Sua Graça, mostrando que nunca é tarde para se emendar. Reconheceu o Bom Ladrão que Cristo é Rei, não que irá ser Rei, ou que fora Rei. Mas que Ele é Rei Sempiterno, que o Reino de Deus não tem raiz neste mundo, mas que já se dá sobre este mundo para se consumar no Outro.
Deus sempre vem no hoje, pois é apenas o momento presente que possui consistência ontológica e que temos posse para corresponder à Graça de Deus. Um ato de contrição perfeita do Bom Ladrão, bastava para ele que Cristo o lembrasse, pois tinha inteira confiança de Sua Onipotência e Misericórdia para redimi-Lo e torná-lo partícipe de Seu Reino mesmo diante da terrível miséria que que se encontrava. Grande Esperança, abandonada nas Promessas do Rei Divino. Naquele mesmo dia em que Cristo haveria de morrer, salvaria o bom ladrão e os demais justos ao descer aos infernos do limbo dos justos.
Não deixou Sua Mãe Santíssima sem arrimo ao entregá-la à proteção de São João, e entregou Maria Santíssima por meio de São João, para ser mãe de todo gênero humano, Senhora de toda a criação, para que todos sejam guiados, amparados e protegidos maternalmente pela Mãe de Deus, confiou todos os homens à Sua Mãe para ser tesoureira e Medianeira de todas as Graças de Seu Filho e modelo supremo de união com Ele.
Cristo era perfeitamente unido ao Pai em unidade de Substância entre o Pai e o Filho, consubstancial ao Pai, não podendo nunca deixar de sê-Lo. O abandono que Cristo brada ao Pai foi em razão da suprema desolação, da desproteção de Sua Humanidade, que emitia permanecendo sempre unida hipostaticamente na Pessoa Divina do Verbo, e também gozava sempre da Visão Beatífica, não fora poupada em nada, passando pelo mais cruento e ignominioso dos suplícios e humilhações, bebendo o cálice do sacrifico até o Fim por amor ao Pai. Sem nada poupar, sem reservar nada para si, nem a própria vida. Não se trata de acusação, muito menos de revolta. Exprime a suprema vulnerabilidade e privação de todo consolo sensível e espiritual em Sua Humanidade para satisfazer por nossos pecados.
Fora Cristo privado de todo refrigério e consolação, dando-Lhe bebida azeda, ao passo que também manifestava Sua sede de almas, sede de recapitular todas as coisas no Pai.
Cristo esgotou até as fezes do cálice, não restando nada para entregar, não poupando nada, de modo que disse que tudo estava consumado, mostrando que Sua Paixão era necessária para satisfazer condignamente o ultraje infinito feito por nós ao Pai. Completou sua Divina Obra para qual veio ao mundo. Justiça perfeitíssima.
Cristo entregou nas mãos do Pai o seu espírito. Isto é, pôs em depósito do Pai Celeste a sua vida enquanto Homem para que morrendo pudesse satisfazer pelos pecados dos homens, e para que fosse restituída no tempo devido. Cristo conheceu a morte, mas não foi absorvido, dominado ou vencido por ela. Seu brado antes de expirar exprime o desejo breve de Ressuscitar para que se confirmasse a Fé de que Ele realmente havia padecido e morrido para tolher o pecado do mundo, justificar-nos diante de Deus, remir nossas culpas, mostrando que é Senhor da Vida e da Morte. Assim Cristo entregou Seu espírito nas Mãos do Pai.
A Morte de Cristo culmina Seu Sacrifício que se fez obediente ao Pai até a Morte e Morte de Cruz, enfatizando ao cristão que deve perseverar no caminho em união com a Cruz de Cristo, abandonando-se à Sua Vontade com a perseverança que é fruto da Graça, até o dom inteiro de si, como vítima, em holocausto de amor até o fim da vida, até o último suspiro, buscar fazer a Vontade de Deus até nos mais finos “âmbitos, recantos e dimensões” de nossa alma, sem retroceder, sem retardar, nem reservar nada para si, sempre unidos à Cruz de Jesus, pois somente por ela nós somos remidos, obtendo a justificação diante do Pai. Cristo nos deu o máximo exemplo de perseverança na Cruz, e não é possível seguir Cristo sem imitá-Lo, sem reproduzir analogamente pelo auxílio de Sua Graça esta perseverança heroica para que a vontade do Pai seja feita em nossa vida. Por Cristo, com Cristo, e em Cristo entregamos nosso espírito nas mãos do Pai, para que nossa inteligência não veja nada que não seja pelo olhar de Cristo, que nossa vontade não queira nada fora do querer de Cristo, como Ele quer, tanto quanto Ele quer, até quando Ele quer para nossa vida.
O descendimento da Cruz e sepultamento de Cristo remete ao cristão o acolhimento da Santíssima Virgem no momento da morte. Cristo é o Homem das Dores que assumiu nossas misérias e culpas mortais, e Maria Santíssima é a Mãe das Dores que viveu em perfeitíssima união com as dores de Seu Filho, pois Ele quis que ela participasse de modo único e especialíssimo de sua Redenção, sendo assim, corredentora. Cristo deu Maria por Mãe do gênero humano e assim como ela recebeu Seu Divino Filho ao descer morto da Cruz, apalpando-Lhe no Santo Sepulcro, de modo análogo como Mãe receberá todos os que morrem em Cristo ao fazer a Vontade do Pai, pela Graça do Santo Espírito.
Agora e na hora de nossa morte é tudo o que há para nós. É no agora e na hora de nossa morte que se deve sempre suplicar a intercessão da Mãe de Deus, buscando desde já uma união moral com ela, para ser por ela conduzido a corresponder aos mais profundos anseios Salvíficos de Jesus Cristo para cada um, e por Maria, com Maria e em Maria, seja objeto do favor de Deus no momento presente e no último instante. “Nunc et in hora mortis nostri.”
Cristo Ressuscitou, como havia dito, confirmando que Seu Sacrifício foi aceito pelo Pai, sendo o único sacrifício digno de Deus; que Ele realmente havia morrido para nos redimir, obtendo-nos a vitória sobre o pecado e seu salário: a morte eterna. Apareceu para Maria Madalena e para alguns discípulos, andou no Caminho de Emaús, foi reconhecido ao partir o Pão, deixou que se visse e que o incrédulo Tomé apalpasse Suas divinas Chagas; passou as suas últimas semanas na terra ensinando os Apóstolos, deu-lhes o poder de perdoar e reter os pecados, conferiu o Primado de Sua Igreja a Pedro em Sua Pessoa, e enviou os Apóstolos para ensinar em Seu Nome e batizar todas as nações em Nome de Deus (Pai, Filho, e Espírito Santo); Ascendeu aos Céus, regressando ao Pai para que enviasse com Ele o Espírito Santo prometido, no intervalo de nove dias onde ocorreu a primeira Novena da história com a Santíssima Virgem e os Apóstolos reunidos em oração no Cenáculo à espera do Paráclito, que veio para confirmar em Graça os Apóstolos com a plenitude de seus Dons. Nasce a Igreja, prolongamento da Encarnação do Verbo Divino, Corpo Místico de Cristo que aplica Sua Salvação por todo o orbe, pelos séculos dos séculos.